"Ele tratava-me por Chico": a amizade discreta entre Balsemão e o rei Juan Carlos
Desde Cascais até Saint-Tropez, Francisco Pinto Balsemão e Juan Carlos I partilharam uma juventude de cumplicidade e liberdade. "Tivemos uma relação de miúdos bastante íntima", chegou a contra Balsemão, que morreu esta terça-feira aos 88 anos.
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Francisco Pinto Balsemão e Juan Carlos I conheceram-se em crianças, entre os jardins e os campos de ténis da Linha de Cascais. Era nos verões longos, passados entre Cascais e o Estoril, que se cruzavam com outros nomes sonantes da sociedade lisboeta da altura: Espírito Santo, Arnoso, Pinto Basto. No meio daquele grupo havia espaço para brincadeiras, códigos próprios e laços que durariam décadas.
Juan Carlos, ainda príncipe das Astúrias, era conhecido entre os amigos como "don Juanito". A Balsemão chamavam "Paquito" ou, como o rei gostava, "Chiquinho". "Felizmente, não pegou essa do "Chico", mas ele tratava-me por Chico", recordou, entre sorrisos, no programa "Alta Definição", em 2021.
Cresceram lado a lado numa época em que Cascais ainda era vila e o restaurante O Pescador, junto à lota, era ponto de encontro de famílias abastadas e jovens inquietos. Entre eles cultivou-se uma amizade fora do comum.
Memórias entre a lota e Saint-Tropez
Durante a juventude, um dos pontos de encontro mais frequentes do grupo era o restaurante "O Pescador", mesmo junto à lota de Cascais. Ali, entre o cheiro do peixe acabado de chegar e as mesas partilhadas ao ar livre, misturavam-se conversas despreocupadas com laços que se estreitavam. Era um cenário onde o filho de um futuro primeiro-ministro português e o herdeiro ao trono de Espanha podiam estar à vontade, longe dos olhares do protocolo.
Mais tarde, já adultos, voltariam a cruzar-se noutras latitudes, como Saint-Tropez, um dos destinos favoritos do jet set europeu. Juan Carlos, então príncipe, procurava escapar aos fotógrafos. "Eu estava noutra mesa com uma amiga francesa e ele contou-me que andava a ser perseguido", contou Balsemão à agência espanhola EFE. A solução foi trocarem de carros. Juan Carlos saiu com o de Balsemão e ninguém o seguiu. "Eu saí com a minha amiga e não paravam de fotografar-nos. Foi um grande êxito para mim, mas também foi bom para ele."
A amizade resistiu aos anos e às mudanças. Juan Carlos foi proclamado rei de Espanha em 1975, dois anos depois de Balsemão ter fundado o jornal "Expresso". Em 1981 o jornalista e empresário chegava ao cargo de primeiro-ministro. A estação "SIC" surgiria mais tarde, em 1992. Mesmo com responsabilidades em lados diferentes da Península Ibérica, continuaram a falar.
"Nunca mais o vi, mas tivemos uma relação de miúdos bastante íntima", disse, emocionado, em 2021. "Quando ele vinha cá estava no Estoril, eu em Cascais. Isso depois prolongou-se à medida que fomos crescendo, à medida que fui tendo outras responsabilidades e ele também."
Sobre os últimos anos de Juan Carlos, marcados por escândalos e pelo exílio em Abu Dhabi, Balsemão foi contido, mas leal. "Lamento tudo o que lhe aconteceu e não compreendo bem como nem por quê. Continuo a ser amigo dele."
Recentemente têm surgido notícias de que o rei emérito pondera fixar-se em Portugal. Se o fizer, reencontrará o cenário da infância. Mas não reencontrará "Paquito". Francisco Pinto Balsemão partiu esta terça-feira, aos 88 anos, e com ele vai também um pedaço discreto da história partilhada entre duas figuras que moldaram os seus países.

