O Tribunal da Relação de Lisboa decidiu-se pelo julgamento de uma médica do Hospital de S. José, por homicídio por negligência, por ter supostamente administrado terapêutica para alcoolizados, a um doente com sinais "claros" de traumatismo cranioencefálico.
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Por acórdão de 23 de maio, os juízes da Relação revogaram o despacho do juiz de instrução criminal, que decidira não levar a julgamento a médica, ordenando a reformulação da decisão para que a arguida seja julgada por homicídio por negligência.
"Não podia o Tribunal deixar de concluir pela existência de indícios da atuação negligente da arguida nos cuidados devidos ao paciente que lhe vieram a causar a sua morte, sendo suficientes para admitir a reunião dos necessários pressupostos para a fase processual seguinte da submissão da arguida a julgamento, pela prática do crime de homicídio negligente", lê-se na decisão da Relação.
Numa primeira fase, o Ministério Público (MP) arquivou o inquérito a esta ocorrência, que remonta a 2007, alegando que a morte resultara de fatores adversos e que não fora possível indiciar a existência de responsabilidade jurídico-criminal da médica assistente.
Inconformada, a família requereu a abertura da instrução, mas o juiz decidiu não levar a médica a julgamento (despacho de não pronúncia).
Desta decisão recorreram a família e o MP, tendo agora a Relação decidido que o despacho do juiz de instrução (que iliba a médica) deve ser substituído por um outro que leva a arguida a julgamento, por homicídio por negligência.
No acórdão, a que a Lusa teve acesso, a Relação considera que a médica "não teve sequer o cuidado de tentar apurar a razão de ser do ferimento" que o doente apresentava, "limitando-se a assumir" que o mesmo estaria alcoolizado, mesmo sem realizar o respetivo teste.
Por isso, optou por suturar a ferida do paciente, "administrando-lhe terapêutica para pacientes etilizados, sem dar relevância aos evidentes sinais da gravidade da situação".
Isto quando, ainda segundo o tribunal, "tudo apontava" para que o paciente apresentasse um quadro clínico de gravidade, já que tinha vomitado, perdido sangue, quer da boca quer proveniente da ferida incisa no occipital, bem como de uma hemorragia no ouvido esquerdo".
O tribunal superior defende que, naquelas circunstâncias, e de acordo com a "leges artis" (princípios médicos), a médica deveria ter solicitado análises clínicas ao sangue, a fim de avaliar o grau de alcoolemia do paciente, e assim perceber se o estado de semiconsciência do mesmo era devido ao presumido elevado grau de alcoolemia.
De acordo com os mesmos critérios, a médica deveria ainda ter solicitado a realização de uma tomografia axial computadorizada (TAC), para avaliar a extensão da lesão do paciente e reencaminhá-lo, "de imediato", para o Serviço de Neurocirurgia.
O doente deu entrada no hospital a 22 de agosto de 2007, pelas 5.51 horas da madrugada, com lesões alegadamente provocadas por uma queda.
Uma hora depois de ser atendido e suturado, o doente entrou em coma profundo.
Foi então observado por outras duas médicas, que pediram a realização de uma TAC, isto três horas depois de o doente ter dado entrada no hospital.
O doente morreu dois dias mais tarde.
No recurso da assistente, refere-se que, nas análises clínicas, registadas às 10.14 horas do dia da ocorrência (22 de agosto de 2007), a taxa de alcoolemia (etanol) da vítima era de 51,8mg/dl, ou seja, na unidade de medida usada quotidianamente, cerca de 0,5g/l de álcool, valor esse "não passível de gerar o grau de desorientação que o paciente apresentava, e que se encontra descrito nos autos", que levaram inicialmente a ilibar a médica.