"Cidadania Impura" é um espaço de opinião semanal assinado pelo escritor Valter Hugo Mãe
Alguém me disse que o Itamar tinha editado seu livro e eu reparei em como ele era tímido. Estávamos na Bahia, a Simone Paulino e o Abdellah Taïa a brincar na felicidade, e eu fui comprar o livro do Itamar porque me impressionou seu jeito. Alguém disse que ele era ali mesmo da Bahia. Não soube mais nada. O livro chamava-se "Torto Arado". Pedi que mo assinasse. Quando comecei a ler, os seus prémios foram chovendo e eu entendi perfeitamente a razão.
Hoje, mais de um milhão de exemplares depois, o Itamar não só é uma evidência na literatura do Mundo, ele é sempre o rapaz bonito que nasceu daquela timidez. Quero dizer, o rapaz de bom gesto, de um cuidado gentil que não se corrompe com o furioso da vida.
Quis a sorte que eu estivesse em São Paulo aquando da apresentação do volume que fecha a sua importante trilogia. "Coração sem medo", lançado na maravilhosa Sala São Paulo, completa o ciclo de heroínas trágicas que Itamar imaginou para denunciar o quanto a negritude ainda garante de terrível. Fui comprar meu exemplar e pegar meu novo autógrafo e outra vez começo a ler com a limpa impressão de abrir os olhos sobre uma verdade que não me quiseram contar. A obra do Itamar, como a de tantos contemporâneos negros do Brasil, é o que não se quis contar nos meios brancos, privilegiados, culpados. O tabu caiu em cima da negritude para que ela fosse só um problema dos outros. Para que ela fosse quase uma intimidade.
Como haveria algo assim de ser reservado à intimidade? A pele não é algo que se adie para anunciar num baile de revelação. E a pele não é cor, é cultura. É identidade.
Vejo no Brasil de hoje uma avidez que a Europa perdeu. Estamos numa distopia que parece não apresentar saída. No Brasil, ao contrário, alguma coisa sempre escapa à promessa do pior. O pior acontece, mas as pessoas reincidem num esforço que se traduz numa arte, numa cultura, que não abdica de reafirmar o esplendor da nascente e a esperança de algum futuro. O Itamar está nessa força. O Itamar é essa força. Fico feliz de constatar isso. Em algum lugar do planeta alguém haveria de insistir no lado bom da humanidade, mesmo que muito em redor o queira abater. Tenho orgulho de poder testemunhar isso.