"Cidadania Impura" é um espaço de opinião semanal assinado pelo escritor Valter Hugo Mãe.
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Estou convencido de que o Pacheco é daquele género tímido, mas que adora pessoas e faz mais amigos do que glóbulos brancos porque aprendeu a vencer a lonjura interior pela maravilha de haver música e gente no Mundo. O Pacheco é mais parecido comigo do que ele poderia pressupor. Por isso, eu sinto que ambos nos salvamos por estar num concerto, ler um livro, trazer um livro assinado para casa, como quem traz um amigo sincero, verdadeiro.
Ambos temos uma infinidade de paixões, mas comungamos de uma estrutural filiação na mística dos Current 93, como se fosse um lugar espiritual que nos recebe e nos devolve à vida. O papel do trabalho dos C93 na minha vida é semelhante ao de uma família feita de som e texto, uma que me deixa o sangue mutante e o destino sempre claro de chegar a uma escuridão onde eu mesmo acenda. A música não me serve tanto para a festa, serve-me para ir dentro. O Pacheco, creio, pertence a essa cidadania dos que caminham para dentro, conhecedor de que nada maior existe do que o nosso próprio interior.
Somos de bailes escuros, lugares de estar mais escondidos do que revelados, porque nos queremos encontrar a nós mesmos, e os outros só fazem sentido se tiverem noção desse naufrágio à espreita. Vimo-nos em Londres, quando, na Union Chapel, se juntaram os afiliados todos e o Pacheco cuidara de nossos lugares para a homilia esperada. Que um grupo musical possa ser uma liderança espiritual é algo que mexe comigo. Não porque aceite religiões como se fossem passatempos, mas porque procuro a música como quem quer o sagrado. Procuro a arte como quem quer o sagrado. Quando o concerto começou, cada um de nós estava num lugar só seu, ao fundo de quem é, levado ali por anos de identificação com a música de David Tibet e seus companheiros.
Pode parecer coisa pouca, mas no submundo de uma arte tão obscura aqueles que ali caminham tornam-se cúmplices, uma espécie de irmandade que se faz pela consciência também brava de descortinar a beleza das coisas mais difíceis. Quando ouço os meus mais de cem discos dos C93 sei que estou numa irmandade. Não tem de se usar para nada. Apenas para saber que nosso sangue mutante não está só. Somos uma pequena multidão. Tímidos e adorando pessoas e sabendo que é ao longe que mora o tesouro.