À semelhança do que se faz em Londres ou Nova Iorque, Lisboa acolhe até março uma peça de teatro imersivo de grande escala, onde cada visitante decide e segue o seu caminho.
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Se a vida é feita de escolhas, a arte teatral não tem de nos ser servida - pode ser feita de escolhas também. A experiência de teatro imersivo de larga escala, um sucesso reconhecido em grandes cidades mundiais, é ainda infrequente em Portugal mas chegou a Lisboa de forma incomparável; com uma história onde Edgar Allen Poe conhece, inveja e contempla destruir Fernando Pessoa - sendo a maneira como o conto chega ou afeta cada um, totalmente individual.
Estreada a 13 de janeiro no antigo Hospital Militar da Estrela (agora House of Neverless), em Lisboa, "A Morte do Corvo" conta com criação e direção artística de Nuno Moreira, já responsável por um espetáculo imersivo em 2015, "E morreram felizes para sempre". Na nova trama, porque há sempre uma trama, Allan Poe ressuscita e vive uma relação tensa e ciumenta com o poeta português Fernando Pessoa, a quem acaba por idealizar - e até orquestrar - a sua morte.
Este é o ponto de partida (e também de chegada), mas o caminho é único. Aqui não há texto, não há um palco. Há quase 30 salas, em dois mil metros quadrados, cada uma com o seu cheiro, a sua cor, ambiente, e com um retalho de uma narrativa maior e comum, como explica Nuno Moreira ao JN.
"A narrativa principal assenta no desejo de Allen Poe de matar Pessoa, movido por uma incontrolável inveja da sua genialidade", inicia. Neste enredo fantasista, Poe é o diretor da funerária Never More e ela esconde no piso de cima a Ordem dos Corvos, sociedade que procura o segredo da imortalidade. Pessoa faz parte desta ordem e convida o amigo Mário de Sá Carneiro para ser iniciado. Poe aproveita para manipular várias personagens e todos conspiram para que Pessoa entre numa espiral depressiva e acabe por morrer.
Este é o eixo, mas nada mais é linear: "além da narrativa principal há subtexto e histórias secundárias pelo que este é um espetáculo rico, de várias camadas e até para ser visto várias vezes", frisa o diretor. Esta dinâmica de recorrência de visita faz aliás parte deste formato, porque há sempre coisas a acontecer em vários espaços e é "impossível ver-se tudo numa visita", destaca.
Logo ao entrar, os visitantes "mergulham de cabeça nos anos 20" e podem explorar livremente a história, seguindo personagens; ou então sentir o espaço, observar detalhes, deambular - pelas tais 30 salas "meticulosamente" decoradas e iluminadas.
"Pelos cenários, as personagens movem-se sem palavras e a ação desenrola-se por linguagem corporal e coreográfica, o que permite que as pessoas não tenham de estar atentas ao que está a ser dito para ativarem os sentidos" adianta Moreira. Há fragrâncias por sala, uma banda sonora que envolve o espaço mas ajuda na dramaturgia, tudo resultando numa experiência "transformadora e multisensorial".
Para quem nunca esteve em teatro imersivo, a primeira reação poderá ser a de estranhar. "Há sempre uma fase em que as pessoas se estão a habituar. São regras novas, as pessoas têm de usar uma máscara, não podem falar. E além disso temos um espaço muito grande, labiríntico, com muitas variedades de interação possível com o espaço e personagens", explica o diretor.
À medida que o tempo avança - até porque cada visita permite fazer duas rondas, com dois loops a acontecer -, as pessoas "vão ficando cada vez mais familiarizadas e ganham controle sobre o seu poder de decisão", o que faz com que haja uma evolução. "O próprio visitante tem quase um arco narrativo individual. Uns seguem Ofélia, outros Pessoa, outros Sá Carneiro" e ninguém vê o mesmo pelo que o diretor aconselha até a quem vá em grupo que se separe. No final, quando se encontram, conseguem montar as peças do puzzle, "quase uma abordagem coletiva a uma experiência que acabou de acontecer".
A encenação é de Ana Padrão, a direcção de coreografia é de Bruno Rodrigues e o elenco comporta nove personagens.
"A Morte do Corvo" está, para já, disponível até março de 2023, de quarta a domingo. Os bilhetes estão à venda na Ticketline e começam nos 38 euros.
"A morte do Corvo"
Hospital militar de Lisboa
quarta a domingo