Goste-se ou não de touradas, “Tardes de Solidão”, vencedor do festival de San Sebastian, é um poderoso e único gesto de cinema. Nunca estivemos perto de ver e ouvir tão bem um matador de touros e o animal à sua frente.
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Com o rigor, a exigência e olhar único de Albert Serra, uma vez mais em parceria com a portuguesa Rosa Filmes, o filme acompanha o matador Andrés Roca Rey ao longo de 14 corridas de touros de morte, em Espanha. Para saber mais sobre o conceito, estivemos a falar com o realizador catalão.
O cidadão Albert Serra gosta ou não gosta de touradas?
Gosta mais do que desgosta. Sobretudo num documentário, pode fazer-se uma coisa se gostamos a 100% ou se gostamos 0%. Eu gosto de touradas a 55%. Quando se faz algo tem de ser em positivo. Se fazemos um documentário, é porque temos curiosidade, um pouco de fascínio, algo que nos interessa. Se fazes em negativo, é para criticar. Eu sou uma pessoa crescida, acho que é uma perda de tempo criticar.
Foi então uma abordagem pela positiva…
Quero fazer coisas que me seduzam, que sejam um mistério para mim. Se fazemos em positivo, mesmo que seja apenas a 55%, a tua opinião já não é o importante, mas sim a curiosidade que tu tens pelo tema. O tema passa a ser mais importante que a tua opinião. Se for em negativo, a tua opinião já é o mais importante. E em positivo estamos com uma mente mais aberta, menos fechada.
O filme, tecnicamente, é um prodígio. Fica-se com a ideia que há alguns anos não poderia ter sido feito assim.
Pelo menos com o som, nunca foi. Antes não havia microfones assim. Muito do que filmámos, pela sua proximidade, e do que gravámos, nunca tinha sido visto e ouvido antes. As tecnologias de som que utilizámos tem apenas três ou quatro anos. Hoje há microfones com autonomia para cinco horas, antes da pandemia, funcionavam a pilhas a tinham uma autonomia de uma hora.
Como espanhol, não deve ter escapado a ir ver corridas de touros.
Quando era pequeno fui umas dez ou vinte vezes. Mas nos últimos 35 ou 40 anos não fui mais. Agora fui por acaso, porque um amigo apoderado me convidou. E há oito anos que me anda a dizer que tenho de fazer um documentário. Mas eu não tinha nenhum tema. Se não há tema não há filme. O turismo em Lisboa é um tema grave. Mas não dá para cinema, dá talvez para a televisão.
A sua abordagem é mais estética ou ética?
Estética. O filme é um documento antropológico. A ética do filme é apenas que é um documento sociológico sobre uma coisa que acontece em Espanha, em 2025, goste-se ou não se goste. Mas que acontece. É um documento antropológico que regista que isto acontece. E acontece desta maneira.
O Andrés gostou do filme?
Não gostou. A princípio não gostou mesmo nada. Agora, um pouco, começa a ver o filme como uma obra de arte. Era difícil ter uma opinião sobre o filme quando ainda ninguém o tinha visto. Mas sendo o protagonista e antes que alguém o tivesse visto, pensava que o filme era uma loucura. Tinha medo, não sabia qual iria ser a reação.
Como o convenceu a fazer o filme?
Ainda não percebo como aceitou. É uma pessoa muito misteriosa, como se vê no filme. Mas também muito aberta. Demorei três minutos a convencê-lo. E nunca colocou problemas. Às vezes não queria pôr o microfone, porque o atrapalhava. Mas não se importava connosco, estava concentrado noutra coisa. O filme tem esta força porque há a impressão de não ter nenhum filtro. Não há nenhum tipo de manipulação, nenhum.
Na verdade, parece que a sua câmara não está lá.
Eles estão com a mente noutra coisa, para eles a câmara não tem nenhuma importância, é como se não existisse. Tem tão pouca importância, comparado com aquilo em que estão concentrados. E isto é raro, hoje em dia, porque estamos habituados a câmaras por todo o lado e às redes sociais. Queremos ter o controlo da imagem. Nos meus filmes de ficção também tento que os atores percam o controlo da imagem. Aqui não foi deliberado, mas eles estão sujeitos a um perigo de morte. O cérebro deles está num outro lado.
Os espectadores de cinema e também os autores, normalmente ficam do lado dos mais desprotegidos. Aqui o mais desprotegido é o touro.
O matador também assume os seus riscos. Na terceira corrida que filmámos quase morria. É um milagre que esteja vivo. É um risco que passa por uma coisa que o touro não tem, que é só humano, o medo. O touro não sabe o que é a morte. Nós humanos, temos medo que nos despeçam, que nos roubem, que nos matem, que o marido ou a mulher nos deixem. O medo é natural no ser humano, é um privilégio do ser humano. O touro está sozinho, mas medo não sente. Dor física, sim, mas dor psicológica não sente.
Diria que a corrida de touros é uma metáfora da vida?
É aceitar a vida, com todas as suas imperfeições, com todos os riscos, com a imperfeição final, que é a morte. A vida é finita, não é infinita. É a pior de todas as imperfeições. A corrida é como uma liturgia, simbólica, em torno deste facto que a vida é imperfeita. Mas que temos de o assumir.
Finalmente, para apreciar o filme não é preciso gostar de touradas, como não é preciso ser nazi para se gostar de “O Triunfo da Vontade”, de Leni Riefenstahl.
Para nós pode parecer ridículo arriscar a vida a tourear. Para nós valeria a pena esse risco pela família, numa guerra contra o inimigo, mas tourear parece um pouco ridículo. Mas faz parte do mistério da tauromaquia. É ridículo, mas, ao mesmo tempo, pode haver momentos sublimes, plasticamente. Os trajes, o sangue, os movimentos, a sensualidade, a harmonia. Também há uma beleza plástica. Para eles, é uma vida estilizada, melhor do que a própria vida. A vida normal não é boa, esta é melhor.
Há um lado de Howard Hawks naquele grupo de homens que se defende e luta por um objetivo comum.
Gosto muito desse aspeto. É algo que está um pouco perdido, mas ali parece natural. Mas não foi imposto por mim. É por tradição, eu não me meto. É algo de muito genuíno e desmesurado. Há uma mescla de muitos elementos, é essa a beleza do filme. Não há apenas o elemento ético, ou o elemento plástico, que também é importante. Há humor, ironia, o popular, a poesia popular. Este tipo de personagens inspirou muita gente, como Lorca.
É uma tradição muito espanhola, apesar de existir em outros países, como Portugal.
Há algo de crepuscular no filme. De suicida, irracional, de obscuro. A pulsão irracional que está dentro de todos nós, mas que em Espanha resiste a desaparecer. É o Viva la Muerte da Guerra Civil. Há uma pulsão irracional obscura espanhola. De Goya, de Ribera, todos os grandes pintores e poetas.
Onde é que este filme se inscreve na sua filmografia?
O folclórico e o sociológico não me interessavam. Já está na imprensa, nos jornais e nas revistas. Queria que fosse conceptual, mas não demasiado. Que não fosse uma instalação de arte contemporânea, como o filme de Zidane. Conceptual, mas atravessado pela vida. Que fosse rigorosa, precisa, fantasiosa, mas não para ser visto num museu. Que tivesse vida, que fosse genuíno. Que se visse o sangue, a morte. A vida e a morte. Que tivesse emoções de cinema.