Andrea Segre fala sobre “A Grande Ambição”, já nas salas de cinema.
Corpo do artigo
Filme de abertura da recente Festa do Cinema Italiano, já está em exibição por todo o país “A Grande Ambição”, sobre o período, na década de 1970, em que Enrico Berlinguer, secretário-geral do Partido Comunista Italiano, se afastou de Moscovo e tentou criar uma coligação estável de poder com a poderosa Democracia Cristã. Estivemos a conversar com o realizador Andrea Segre.
Qual é a atualidade do filme e da história de Enrico Berlinguer? Porquê agora?
Precisa-se pelo menos dois ou três anos para concluir um filme. A realidade do mundo mudou muito desde que comecei a trabalhar no filme. Não havia guerra na Ucrânia nem no Médio Oriente. Não havia um governo de extrema-direita em Itália, nem de novo Trump. Mas a história específica do Partido Comunista Italiano tem elementos muito interessantes para refletir sobre a crise da democracia noz dias de hoje.
Na sua opinião qual é a base dessa crise?
É o desenvolvimento de uma noção individualista da sociedade, causada pelo triunfo do sistema capitalista. A experiência do PCI era no sentido de impedir esse desenvolvimento. Por outro lado, respeito aqueles que pensam que estamos melhor hoje que antes. Há uma parte da humanidade que pensa que o capitalismo é um sistema maravilhoso. A outra questão está ligada â desigualdade. Estamos completamente normalizados no que diz respeito à questão das desigualdades.
Como é que chegámos a essa normalização?
É completamente normal para qualquer um de nós pensar num mundo em que alguns podem ter mil vezes mais do que outros. E fomos habituados a sonhar que podemos ser todos ricos. Mas as desigualdades são uma das principais razões para as crises das nossas sociedades e podem ser um ponto de partida para ainda mais crises. O PCI lutava permanentemente para a existência de um mundo sem desigualdades.
Qual é o papel do Partido Comunista hoje em dia em Itália?
A partir de 1989, o Partido Comunista mudou o nome para Partido Democrático de Esquerda. E hoje é apenas Partido Democrático. A Esquerda desapareceu do nome. Mas é o principal partido resultante do fim do Partido Comunista. Há ainda outro, o Esquerda de Itália, aliados com o Partido dos Verdes. São os dois filhos do Partido Comunista. Depois há uns sete ou oito partidos comunistas, mas muito pequenos, com menos de um por cento de expressão eleitoral.
Vista do exterior, a paisagem política italiana parece uma das mais complexas de toda a Europa.
Para nós é normal. O que é estranho é que nunca tivemos um Partido Socialista forte, como nos outros países europeus. O nosso Partido Socialista foi sempre menos forte que o Partido Comunista. Mas quando a União Soviética se dissolveu, o Partido Comunista decidiu entrar no grupo socialista do parlamento europeu.
Como é que o filme foi visto em Itália, neste momento governado por um partido de extrema-direita?
Foi um sucesso, foi visto por 600 mil pessoas. Tornou-se um instrumento de discussão no seio da esquerda. Na nossa história recente tivemos Silvio Berlusconi, um génio na realidade, trágico do meu ponto de vista, mas que fez uma grande revolução, ao declarar que a política é um negócio privado. E Trump está a segui-lo. Com o filme temos uma ocasião para refletir sobre a relação entre a política e os negócios, um dos grandes problemas do nosso tempo, com trágicas consequências para as nossas vidas.
Apesar do tema, teve total liberdade para fazer o filme?
Não tive de lutar muito para defender o filme. Confiaram na minha ideia. Eu não quis celebrar este homem e este partido. O que quis foi respeitar o seu papel na nossa história. Perceberam que a minha ideia era usar esta memória para discutir sobre os dias de hoje. E a RAI Cinema está mesmo dedicada a fazer bons filmes. Tiveram um papel importante na criação de uma nova era do cinema italiano. Perceberam que aumentar a qualidade dos filmes era uma forma de garantir a independência dos políticos.
E com o Ministério da Cultura?
Esse é outro problema e outra discussão. Têm atacado muito o cinema, criando novas leis, bloqueando o sistema. Hoje em dia há muitos profissionais de cinema sem trabalho. Mas o cinema independente sobrevive, conquistou a sua independência através do aumento da qualidade dos seus filmes. E a coprodução e a distribuição internacional tem sido muito útil.
Que razões estiveram por detrás da escolha de Elio Germano para protagonista?
Conheço o Elio há uns quinze anos. Conhecemo-nos em diferentes grupos militantes. Mas nunca tínhamos trabalhado juntos. Quando comecei a pensar neste filme telefonei-lhe a perguntar se o queria fazer comigo. Aprecio imenso o talento dele e achei que o corpo dele era perfeito para recriar o corpo do Enrico Berlinguer. Mas a principal razão foi porque acreditei que podíamos estar de acordo sobre o significado político do filme.
Como é que trabalhou com ele?
Passámos três meses juntos, fazendo pesquisa, conhecendo testemunhas, familiares. Quando se trabalha com um ator tão talentoso não se controlam as suas capacidades técnicas. Aconselhei-o a não ter nenhum efeito de prostética, apenas um pouco de maquilhagem nos olhos e claro que o cabelo está diferente. O Elio usou uma linguagem que tem raízes na Sardenha do Berlinguer. E move-se da mesma maneira que o Berlinguer. Mas é uma forma de se inspirar, para se tornar na personagem.
Nas imagens de arquivo do funeral de Berlinguer vemos gente como Marcello Mastroianni…
Estavam também lá o Michelangelo Antonioni, o Scola, Monica Vitti, Fellini, Gillo Pontecorvo, Monicelli… Muita gente do cinema italiana votava ou era mesmo membro do Partido Comunista, como Scola, Pasolini ou Visconti. Hoje em dia as pessoas do cinema ainda estão na maioria à esquerda, mas sem saber muito bem a que esquerda é que devem pertencer. Mas o importante não é pertencer a um partido, mas sim estar empenhado politicamente. Cumprir o seu papel como artista, como cidadão.
O 25 de Abril de 1974 em Portugal teve grande repercussão em toda a Europa. Como foi em Itália?
Lemos muito sobre a revolução portuguesa durante a campanha para o referendo sobre o divórcio. A certa altura pensámos em colocar alguma referência no filme, mas já se sabe que temos de sintetizar tudo. O fim da guerra do Vietname e a libertação de Saigão também tiveram grande influência na época. Havia uma grande discussão sobre questões nacionais e internacionais.
Na sua pesquisa, viu alguma alusão à relação do PCI com o Partido Comunista Português?
Berlinguer tentou estabelecer um diálogo com os partidos comunistas de Espanha e França, na tentativa de criar um novo centro comunista internacional, independente de Moscovo. Foi a época do eurocomunismo. Mas o Partido Comunista Português não estava de acordo com esta ideia. O que é trágico hoje é que não temos um partido comunista mas temos um partido de extrema-direita. Temos de continuar a lutar.