São 18 olhares cruzados e distendidos no tempo sobre o Cineclube do Porto, reunidos num livro que "traz até aos leitores histórias até agora na penumbra", explica o coordenador do volume, Manuel Vitorino.
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Com a chancela das Edições Afrontamento, "A vida é um filme - Histórias e memórias do Cineclube do Porto" -, livro apresentado na semana passada, na Biblioteca Almeida Garrett, pelo cineasta António-Pedro Vasconcelos - procura "fugir da cronologia oficial e dar a palavra aos seus antigos associados".
O resultado é um conjunto de depoimentos marcados por vivências tão fortes que nem a passagem dos anos foi capaz de suavizar. Entre os associados que responderam ao repto lançado pelo jornalista encontramos a professora universitária Maria João Reynaud, o advogado Guilherme Figueiredo, o médico e crítico de cinema António Roma Torres ou os arquitetos Alexandre Alves Costa e Manuel Correia Fernandes.
"viver da memória"
O papel da instituição enquanto "casa da liberdade e de resistência", como sintetiza o coordenador, está em evidência. Em vários dos textos evocam-se sessões inesquecíveis onde a censura era habilmente fintada, permitindo o contacto popular com a obra de mestres como Jean-Luc Godard, Federico Fellini, Sergei Eisenstein ou Carl Theodor Dreyer, entre tantos outros.
Com 3500 sócios ativos no seu apogeu, o mais antigo cineclube português não era só um local de exibição de obras, por muito apelativas que fossem. A dimensão do convívio assumia um papel fundamental, como se demonstra pelas páginas de "A vida é um filme", através das quais é recordada a ligação próxima que figuras como Fernando Lopes-Graça ou Manoel de Oliveira tiveram com a instituição.
Há, todavia, uma personalidade mais citada do que qualquer outra nas páginas do livro, Henrique Alves Costa, a quem Manuel Vitorino diz que o livro é dedicado. Num capítulo sobre o lendário cineclubista, é lembrado o papel que teve na afirmação da obra internacional de Manoel de Oliveira ou as batalhas travadas para que o Porto viesse a ter uma extensão da Cinemateca Portuguesa, o que nunca se concretizou.
Mas nem só de cenários idílicos é feita esta revisitação, que aborda também os anos de fricção vividos após o 25 de Abril, quando as tentativas de controlo partidário eram por demais evidentes. O cinéfilo António Reis, um dos fundadores do Fantasporto, recorda o dia em que a Cooperativa do Povo Portuense recebeu a visita de dois atores de "Solaris", filme com que o regime soviético procurou responder a "2001 - Odisseia no espaço".
A encenação habilmente montada só não estava a contar com uma intervenção acalorada de um dos associados, Armando Casais, que denunciou, em alto e bom som, "a vergonha daquela imitação de Hollywood". "O tradutor engasgou-se e um frio glacial siberiano caiu sobre a sala e o que deveria ser o momento de glória do regime foi um momento de vergonha", lembrou.
Neste "guião sem final feliz", o presente e o futuro também são convocados. Manuel Vitorino lamenta que o Cineclube do Porto não passe hoje "de uma vistosa caixa do correio", com o seu espólio, incluindo uma valiosa biblioteca, em parte incerta. Apesar do atual protocolo com as entidades oficiais que permite a exibição cinematográfica na Casa das Artes, "a instituição não tem sede física e vive apenas de uma memória cada vez mais distante".