Pandemia deixou a nu a precariedade que existe na indústria cultural. Parte do setor vive em economia paralela e está agora sem proteção legal.
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A pandemia pôs na montra da sociedade portuguesa uma precariedade gritante na indústria cultural. A situação é tão crítica, que há trabalhadores deste setor que não têm como provar que desempenham a sua atividade, ficando excluídos dos apoios da tutela e da Segurança Social.
Manuela Gonçalves, técnica oficial de contas, trabalha há 15 anos com artistas, e agrupa em três categorias os casos complicados com que se depara. A primeira categoria é formada pelas pessoas que têm trabalhos técnicos, não autorais, e que têm feito um grande esforço para serem incluídos nos apoios. Alguns CAE (código de atividade económica) foram muito lesados pela pandemia. A técnica deixa um alerta: "é preciso que estes trabalhadores sejam incluídos nos apoios do Governo".
A segunda categoria é formada por trabalhadores que nunca declararam a atividade, para não pagarem impostos. "Agora, querem estar na fila da frente para receber apoios e procuram-nos. Como se houvesse uma forma milagrosa de contornar a situação. Evidentemente, não há saída para estes casos", lamenta.
A terceira categoria, e talvez a mais complexa, diz respeito a pessoas que aceitam, por iliteracia financeira e por pressão das entidades empregadoras (que apresentam subfaturação do negócio), não declarar o rendimento. É um tipo de caso tão irresolúvel como o anterior. Muitos trabalhadores foram agora pedir para lhes passarem recibos com retroativos, mas "não surtiu efeito nenhum".
O mesmo problema aconteceu com os negócios que apresentaram valores inferiores aos faturados. "Como o índice de referência é o que está declarado, agora arrependem-se de não terem declarado a faturação correta", esclarece Manuela Gonçalves. Os apoios do Governos são sempre proporcionais aos valores declarados.
Hábitos, cachets e fugas
O JN encontrou vários exemplos de pessoas nestas situações. Rui Andrade é roadie, ou seja, é o técnico responsável por descarregar e carregar o material e fazer a montagem de todos os equipamentos de palco.
"Como não houve concertos, não trabalhei. Nem sequer houve feiras de turismo e eventos, não fiz nada. E como não fiz nada, não declarei nada nem recebi nada", resume. "Não recebo direitos de autor, nem conexos, nem royalties, como os músicos", acrescenta. Mas é um trabalhador da cultura, um invisível que tem como CAE "outros serviços". Atualmente, vive de apoio familiar, a almofada acumulada na década em que trabalhou foi gasta em 2020.
Sandra Silva cantou em casas de fado "toda a vida", mas, explica, como "tudo começou por brincadeira", e o marido ficou "deficiente num acidente de trabalho", pediu aos patrões para ser sempre remunerada em dinheiro. "Também porque tinha medo que tirassem o dinheiro da pensão ao meu marido", admite.
Está sem cantar há quase um ano, "nem o verão aliviou a situação", vive agora apenas da pensão do marido. "Anunciaram tantas ajudas para o fado, tinha esperança de ser ajudada mas não recebi nada", revolta-se. Para as Finanças, é como se ela não existisse. "Sou como as empregadas, mas em vez de limpar, canto".
David Santos trabalha há 25 anos como DJ, os últimos quinze numa quinta que organiza eventos. "Nunca passei recibos. Na quinta diziam-me que não podiam, porque se o fizessem teriam de declarar. Como pagavam mais, não tinham margem para declarar", explica.
"Ganhava toda a gente, ganhava quem organizava, ganhava quem contratava a festa e ganhava eu. De outra forma, não me pagavam". Com a pandemia, os eventos desapareceram e agora David não tem como provar, à luz da lei, que alguma vez tenha desempenhado a atividade que é a sua.
Rui Galveias, do CENA-STE - Sindicato dos Trabalhadores de Espetáculos, do Audiovisual e dos Músicos, sublinha que recebe centenas de casos semelhantes a estes. "Há muitas pessoas registadas com CAE de outros serviços e que não são abrangidas pelos apoios. Estas situações têm de ser resolvidas nas Finanças", insiste. Os "hábitos cristalizados e os baixos cachets levam a estas situações, em que as entidades não fazem contratos e põem no trabalhador o ónus de pagar a segurança social e o IRS. Como os valores são baixos, optam por não declarar".