Ciro Cardinali continua na estrada, como fez a vida toda. Só que, agora, não para atuar em tendas cheias de gente, ansiosa por ver os seus truques no arremesso de aguçadas lâminas, mas para transportar mercadoria de uma empresa multinacional de venda de mobiliário e de decoração.
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Aos 44 anos, a pandemia trocou as voltas ao artista de circo. Para sustentar a família, tornou-se motorista. Como ele, outros colegas tiveram de dar um novo rumo à vida, seja em caixas de supermercados ou na limpeza de quartos de hotel. Há mais de 200 artistas de circo em Portugal. A maioria, segundo a Associação Portuguesa de Empresários e Artistas de Circo (APEAC), sem apoios.
O Natal é, por excelência, a época forte para os circos. "Fazia-se 80% a 90% da faturação anual, principalmente devido às festas das empresas, que este ano foram todas canceladas. Na verdade, a maior parte dos circos está completamente parada há nove meses", revela Carlos Carvalho, presidente da APEAC e proprietário do Circolândia. "A grande esperança que tínhamos era trabalhar no Natal", lamenta.
"Xenofobia cultural"
O circo não sai à rua, mas as contas continuam a ter de ser pagas. Há os impostos dos veículos - "a título de exemplo, um trator de 40 toneladas paga 800 euros", conta Carlos Carvalho. Há os seguros de responsabilidade civil e de acidentes de trabalho, que foram pagos para 2020 e que, entretanto, "vão caducar sem que tenha havido receitas para cobrir os gastos". Há a inspeção anual a que os circos são sujeitos, que "custa 600 euros". E há, acima de tudo, que sustentar as famílias. "O cenário é negro. Os circos maiores estão a recorrer das economias. E depois houve homens que foram trabalhar como motoristas e mulheres a trabalhar em lares de idosos, supermercados e em hotéis", adianta o presidente da APEAC.
No verão, houve circos familiares que tentaram trabalhar, mas, adianta Carlos Carvalho, "não ganharam para os gastos". Por isso, os circos maiores dizem que não lhes compensa, sequer, tentar sair para a estrada. É nesse sentido que o setor se queixa do Governo: "A Direção-Geral das Artes apoia o circo contemporâneo, mas não o tradicional, de acordo com uma lei de 2017. Dizem que, a partir de 2021, já vai ser possível, mas só acreditamos quando virmos. O circo é o setor mais débil da cultura e tem sido vítima de xenofobia cultural, há muitos anos". Carlos Carvalho diz que Marcelo Rebelo de Sousa, quando soube, ficou "indignado". "Toda a gente que sabe disto, aliás, fica indignada".
"Deixamos um apelo sério às câmaras"
O presidente da APEAC diz que os circos, em Portugal, estão "reféns das câmaras", que são quem "licencia tudo". "Deixamos-lhes um apelo muito sério. A retoma só vai ser possível se as câmaras tiverem vontade de nos ajudar, com isenção de taxas, por exemplo. Não se vai poder pedir ao circo para pagar o que pagava". Habitualmente, um circo de dimensão média paga, "por três dias, entre 500 e 800 euros, fora os custos que temos com deslocações, publicidade e tudo o resto", explica Carlos Carvalho.
"Aos sábados no Natal fazíamos cinco espetáculos"
O corrupio deu lugar à monotonia. Os dias passados a fazer sorrir os outros transformaram-se em longas jornadas, tristes, cujo ponto mais alto é quando se vai ao café mais próximo, matar o tempo. Num terreno perto da Figueira da Foz, os membros do Circo Soledad Cardinali desesperam pelo dia em que possam voltar a montar as tendas e a enchê-las de luz, cor e palmas. O mês de dezembro é sempre passado com arraiais montados no Porto ou em Matosinhos. "Ao sábado, fazíamos cinco espetáculos. Primeiro para as empresas, depois para o público em geral", recorda Joaquim Cardinali, diretor artístico. Este ano, está tudo desmontado. E até a motivação para treinar perdeu forças.
Soledad Cardinali, 76 anos, e o genro, Joaquim, 56, montaram o circo há três décadas. Mas nem um nem outro conhece outra vida desde que nasceu. "Somos um dos dois maiores circos do país. A tenda que usamos no Natal recebe 3000 pessoas, custa 80 mil euros. A que usamos em digressão, no resto do ano, 1500. Agora, com tudo parado, temos algumas coisas a estragar-se com o mau tempo", lamenta Joaquim, que em 2019 contou com "cerca de 50 artistas cubanos" no seu espetáculo. Quando puder voltar a sair para a estrada, tem de se investir, logo à partida, "uns 20 mil euros".
É ali, cada um na sua modesta caravana, que vivem cerca de 20 elementos do circo, desde janeiro. Os artistas cubanos regressaram a casa por não haver trabalho. Apoios do Estado: "zero".
Joaquim Cardinali, antigo domador de tigres, diz que o circo teve "de se reinventar quanto deixou de se poder trabalhar com os animais". Vieram os espetáculos de motas - "que o público aplaudiu de pé" - e outros, como o número "Crossbow and knife extreme", em que Ciro Cardinali lança facas e a mulher dispara a balestra, direita a ele, sem o atingir. Mas a precisão exige treino e, "como não se sabe quando se pode regressar, perde-se a vontade". "Tive de me dedicar à camionagem, para sustentar a família", explica o artista, de 44 anos, habituado a atuar pela Europa, inclusive na televisão. Mas tem uma certeza: "Vou morrer no circo. Sou um Cardinali".