A primeira vez que "Dançando com a Diferença" apresentou "Beautiful People", há 14 anos, além dos corpos diferentes colocava-se a questão de serem bailarinos amadores. A companhia que esta quinta-feira recuperou este trabalho para a 12ª edição do Guidance, embora seja a mesma, é constituída por bailarinos profissionais e os corpos fora da norma, em grande medida, deixaram também de ser uma questão. "Quero ser uma bailarina famosa e conhecida internacionalmente", reivindica uma das intérpretes, porém, ela já é tudo isso. A companhia em destaque nesta edição do Festival de Dança de Guimarães confronta o público com o encanto das criações por corpos rotulados como deficientes
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"Para mim a noite e o dia são iguais", avisa um dos bailarinos, logo no início de "Beautiful People". "Aconteceu, ficou tudo sem luz", continua. Contudo, o mundo não mudou, aquele homem para quem deixou de haver luz, é que já não o vê da mesma maneira. "As estrelas ainda lá estão", afirma, "e, quando vos digo boa noite, é nelas que penso". Afinal, não há tanta diferença entre os normativos na plateia e "os diferentes" que se movem no palco.
"Beautiful People" é uma peça de dança contemporânea, mas também um manifesto, com lugar para os protagonistas usarem megafones e gritarem palavras de ordem. O espetáculo que "Dançando com a Diferença" levou ao Guidance 2023, é uma remontagem da peça original de 2008. O processo de criação de Rui Horta, decorreu no âmbito de um trabalho na comunidade e passou por várias visitas ao Memorial do Holocausto (Berlim), à Colina das Cruzes (Lituânia) e aos campos de Ausschwitz-Birkenau (Polónia). Este "lugares de memória" representam o expoente máximo do ódio pelo que é diferente e é particularmente interessante que estes bailarinos se apropriem destes símbolos para produzir arte.
"Some of them want to abuse you"
Com estas referências, a peça só podia ser violenta. Uma intérprete em cadeira de rodas é repetidamente atirada ao chão com repugnância. A personagem, todavia, ganha força de cada vez que se recupera, atravessa o palco arrastando-se nas pernas amputadas, para recuperar a cadeira no outro extremo da cena. O poder que projeta o movimento daquele "meio corpo" multiplica-se quando está no chão. Como se o corpo se tornasse mais inteiro sem a mobilidade artificial imposta pelas rodas. A personagem, agora e entregue a Mariana Tembe, foi, no original, dançada por Elsa Barão que morreu, entretanto. Elsa foi a primeira pessoa a estudar no Conservatório de Dança da Madeira, com um currículo adaptado a uma pessoa sem movimento da cintura para baixo.
A música é importante em qualquer obra de dança, mas aqui merece uma palavra especial pelos bordados de sentimentos de Nick Cave e do saxofone de John Zorn sobre os originais de Ennio Morricone. "Sweet dreams are made of this...Some of them want to use you... Some of them want to abuse you...", o arranjo da música dos Eurythmics que encerra é de Tiago Cerqueira. No final, alguém comentava que "nunca tinha entendido o significado desta canção, até hoje"