A médica pode esperar. Aos 19 anos, a atleta filha de Albertina Machado tem mais pressa de pódios e de glória
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Mariana deixou há muito de ser só "a filha da Albertina Machado", como foi anunciada ao ingresso nas pistas de tartã. A menina de 19 anos preza e agradece muito à ascendência e a própria mamã, atleta olímpica nos anos 1980, transborda de orgulho por se ver superada pelo rebento, uma das maiores promessas do meio-fundo português das últimas décadas. "Já agora, corro pela minha identidade", diz a jovem atleta do S.C. Braga, carregadinha de ambição e de sonhos. Tóquio 2020 está a uns seis segundos, o que é muita coisa em 1500 metros, mas nada é impossível e ainda há atalhos de qualificação, nas cotas dos rankings olímpicos, para vencer a distância e dar asas à esperança. Pernas para que vos quero!
Por estes dias, a estudante de Medicina (frequenta o segundo ano, na UM) anda feliz da vida com o bronze conquistado nos Europeus de corta-mato, decorridos em Lisboa, no passado fim de semana. Não é bem o terreno dela, mas subiu ao pódio sub-20 e voltou a afirmar-se entre as melhores do continente. "Mesmo que sinta que não sou uma atleta magnífica no crosse, tento sempre estar ao nível das melhores. Gosto mais da pista, mas o corta-mato é muito importante. Dá-me força, dá-me garra, dá-me raça", diz Mariana.
E é esta tenacidade que se tem visto nos últimos anos, sobretudo nas pistas e na disciplina predileta, a dos 1500 metros. Foi quarta no Mundial, terceira e segunda nas últimas edições do Europeu. "Só me falta do ouro", diz Mariana, como quem diz que a mais desejada das medalhas não perde pela demora.
Tantos horizontes rasgados após um certo antagonismo familiar: "A minha mãe não queria. Sempre me disse que era uma vida de muitos sacrifícios e que tinha de abdicar de muita coisa. Cheguei a um ponto em que também disse a mim própria que não. Foi depois de entrar numa corrida para que não estava preparada. Fiquei muito mal. Não queria correr mais, porque custava muito. Até que que, depois, um professor, no meu nono ano, me convenceu a participar num corta-mato da Associação de Atletismo de Braga. Apurei-me para o Nacional. A partir daí, começou o bichinho...", lembra Marina.
A partir daí, a menina que não tinha rival lá nos crosses do liceu foi sempre por ali acima. Ingressou no S.C. Braga, que lhe deu todas as condições e uma treinadora, Sameiro Araújo, que já fora mentora de Albertina.
"Quando olho para trás e vejo o quanto eu cresci no atletismo e vejo que ainda há tão muito tempo eu era só a melhor ao nível regional, para, agora, ser uma das melhores da Europa, isso faz-me sentir muito grata a todas as pessoas que me ajudaram e acompanharam até chegar a chegar a este ponto, porque não cheguei aqui sozinha. Tive o apoio da minha família, da minha treinadora, do meu clube, dos patrocinadores. Tenho de estar grata por me terem feito chegar a estes palcos".
"Tive de abdicar de muita coisa em prol do atletismo. Podia ter tido uma adolescência mais normal. Mas os momentos como os que passei no último fim de semana, com a medalha de bronze no corta-mato, fazem-me pensar que todos os sacrifícios por que passei valeram a pena", diz Mariana.
E se também se depara com uma encruzilhada, a corredora minhota não hesita. "Chegou a hora de tomar decisões", diz Mariana, perante a forçosa escolha, que nem chega a ser um dilema, entre o atletismo e o curso de Medicina. "O estatuto de atleta de alta competição não chega para conciliar o atletismo ao mais alto nível com os estudos. Não há assim muitas regalias, na verdade. É muita legislação e pouca prática. Este ano o nível de exigência está a aumentar, porque comecei a fazer treinos bidiários. A qualquer momento, vou ter pôr de parte uma das situações. Provavelmente, vai ser o curso, porque tenho a vida toda para estudar. Não tenho a vida toda para correr. Quero muito obter resultados de grande nível e isso não pode ser aos 40 ou aos 50", conclui Mariana.
Aviso de mãe: "Atleta de elite é uma vida de sacrifício"
"Não era bem eu não querer que ela optasse por uma carreira no atletismo. Simplesmente, sabia muito bem do que isso implica de sacrifícios pessoais. Digamos que não fui muito entusiasta da ideia. Depois, como ex-atleta e como mãe, só me restou dar-lhe todo o apoio. Ela quer ser atleta de alta competição e terá todo o apoio da família, meu, do pai e da irmã", conta a mãe de Mariana, Albertina Machado, que regista no contador pessoal milhares de quilómetros de estrada, desde o início da carreira, nas corridas populares, aos campeonatos regionais, nacionais e internacionais e aos Jogos Olímpicos. E aos milhares e milhares de treinos, à chuva, ao frio, ao sol, ao calor. Ossos do ofício.
"Toda uma vida de sacrifício. E a Mariana já está avisada, porque o talento não chega para se ser uma grande atleta. Há que trabalhar muito. E que abdicar de muita vida social", acrescenta Albertina. "Ela ainda vai ter de optar entre o atletismo e os estudos. E ela é que tem de decidir. Vai ser difícil continuar a conciliar as duas coisas. Se, agora, com treinos bidiários três vezes por semana já é difícil, brevemente, quando tiver de evoluir para quatro treinos bidiários será ainda mais complicado. Ela vai sentir isso", observa Albertina.
"Tem um nível de maturidade fora do comum para a idade"
A treinadora que nos anos 1980 foi mentora de Albertina Machado e de tantos outros grandes nomes do atletismo português - de Conceição Ferreira a Manuela Machado e, mais recentemente, de Jéssica Augusto a Dulce Félix - é a mesma Sameiro Araújo que, quase quatro décadas depois, é a orientadora técnica da filha da antiga pupila. Que ponte!
Um enorme vão de experência e uma sentença imediata sobre Mariana: "É muito cedo para uma avaliação definitiva. Nesta idades, é sempre arriscado. Mas não tenho dúvida de que ela já atingiu um nível de maturidade fora do comum para a idade dela. A Mariana tem muito talento. A médio/longo prazo será atleta de elite", afirma a senhora atletismo.
Sameiro Araújo está também entusiasmada com a perspetiva de Tóquio 2020 e com a possível seleção de Mariana. "É um sonho, mas temos consciência das dificuldades. Entre o recorde pessoal da Mariana e os mínimos olímpicos ainda há seis segundos, e isso é muito numa corrida de 1500 metros. É claro que podíamos apostar nos 5000, que os mínimos seriam bem mais acessíveis à Mariana, mas não há pressa. Um dia de cada vez. Temos de olhar pelo futuro da Mariana", conclui Sameiro Araújo.
Princesa do tartã com Tóquio no horizonte
Lá em casa da princesa minhota do tartã respira-se atletismo. Há equipamentos, sapatilhas e memórias por todo o lado. A mãe de Mariana, Albertina, correu mos grandes palcos olímpicos, em Los Angeles 84, em Seul 88, em Barcelona 92 e em Atlanta 96. O pai, Joaquim, não foi atleta, mas também andou nas corridas de estrada. Pois é também de toda esta programação que também se forja o talento de Mariana, contrastado com um dos maiores nomes do atletismo português: em junho, no Meeting Iberoamericano, em Huelva, Mariana bateu o recorde nacional de juniores nos 1500 metros, com 4:13,31 minutos, superando o anterior máximo, que pertencia a Fernanda Ribeiro (4:14.09). Entretanto, a atleta do S.C. Braga já melhorou o recorde para 4:10, 61 e é bem provável que evolua ainda mais nos próximos meses, mas o mínimo olímpico para os 1500 metros de Tóquio 2020, ainda está longe (4:04.20). "Ainda são segundos. E isso é muito nos 1500", verifica a treinadora de Mariana. Para Sameiro Araújo não há pressa e o melhor é esperar pela evolução natural da atleta, que até pode ir a Tóquio, por via dos "rankings", assim continue a melhorar nos "meetings" da primavera e nos Europeus de Pista Coberta, em Março. Até 29 de junho, data-limite para a obtenção dos tempos de referência, logo se verá.