As gargalhadas mornas de Selby, torso franzino, herdeiro de uma maternidade negligente, iluminam os 40 metros quadrados onde almoçam, repartidas por sofás, mais de 20 crianças com VIH sida. Lyn Croote, directora do Lambano Sanctuary ("Aquele que recebe"), organização sul-africana de inspiração baptista que há sete anos acolhe, trata e enterra meninos infectados e afectados por aquela doença destrutiva, num centro a leste de Joanesburgo, encolhe os ombros e contemporiza: "É apenas virtual. Ele, quando está sozinho, não é assim".
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Selby tem 12 anos - ninguém diria, pelo nível estacionário do seu crescimento -, foi retirado aos pais pelo tribunal por suspeitas de maus-tratos, partilha apelido com seis irmãos, todos filhos de homens diferentes (a mãe prostitui-se), e vive aterrorizado pela memória do dia em que viu ser-lhe apontada uma arma automática à cabeça, durante um assalto violento. Tinha seis anos. A Sida é, por isso, apenas mais uma das chagas indesejáveis que lhe minam o corpo.
"Ele parece um pretzel humano", compara Lyn, apontando para as atrofias musculares do miúdo. Quatro pessoas massajam-lhe, diariamente, as pernas, na tentativa de lhe aliviar as dores. E, quando há dinheiro, o dinheiro que o Mundo moderno tem disponibilizado cada vez menos aos projectos de combate à Sida, até lhe são administradas injecções de botox, toxina botulínica a que as mulheres do mesmo Mundo moderno recorrem para disfarçar as rugas de expressão, mas que produz um efeito mágico nas pernas de Selby, graças ao efeito libertador que provoca na tensão muscular.
Os fundos globais de apoio a projectos de combate à Sida não escaparam à torrente que tem arrastado a economia para zonas subterrâneas. Os contributos monetários das grandes potências sofreram um abrandamento significativo em 2009, terminando um ciclo de seis anos de consecutivo crescimento nas ajudas.
"As reduções do investimento nos projectos de combate à Sida estão a prejudicar a resposta", admitiu, há dias, Michel Sidibé, director executivo da UNAIDS, programa das Nações Unidas de combate àquela doença, durante uma conferência, em Viena, que juntou mais de 20 mil pessoas de todo o Mundo.
Na África do Sul, um dos países com maior taxa de contágio, especialmente entre crianças, o problema assume proporções preocupantes. "As empresas estão a virar o foco", lamenta Luke Lamprecht, 40 anos, director da Big Shoes, Organização Não Governamental que se dedica a prestar apoio a crianças infectadas. "Depois, a própria estrutura fiscal do país não aguenta. Como é possível que, entre 50 milhões de habitantes, apenas seis milhões paguem impostos?", questiona, baixando a cabeça, desanimado.
Como se isto não bastasse, ainda há que lidar com a má publicidade. "Muitas pessoas deixaram de dar apenas porque foram descobertas situações menos legais nalguns centros no que à utilização dos fundos diz respeito", entrecorta Lyn Croote. "E, por meia dúzia, pagam todos. Para algumas pessoas, somos todos corruptos que querem enriquecer à custa da doença das criancinhas". Cada criança exige um investimento de cerca de 60 euros por dia. "Mas posso gastar isso numa manhã em medicamentos", refere Lyn. "Se os fundos baixarem, vamos ter uma crise epidémica como a de 2001, em que os bebés vinham e morriam".
O percurso desta paramédica é singular. Em 2003, por sugestão da Igreja Baptista, de que faz parte, aliou-se a mais duas amigas para criar um centro que funcionasse não só como uma casa-abrigo para crianças, mas simultaneamente como um hospital de primeiros cuidados. Estávamos na era negra do VIH na África do Sul. Na era Thabo Mbeki.
O ex-presidente sul-africano cuja ignorância e preconceito em relação às causas desta doença podem ter custado, segundo estimativas da Universidade de Harvard, um total de 300 mil mortes. Mbeki foi convencido a acreditar na ineficácia do método científico de combate à doença (através do recurso a anti-retrovirais) e acabou por render-se a uma escola de pensamento que propalava a tese de que a Sida na África do Sul se deve à má-nutrição, pobreza e descuido com a higiene e não à acção de um vírus. A "nação do arco-íris" regista um dos mais altos índices de contágio no Mundo, estimando-se que cerca de 5,5 milhões de pessoas estejam infectadas. O que resulta na morte diária de 900 seres humanos.
Mãe por vocação
Falar de sida no mais próspero país do continente negro é falar de números (não há como escapar-lhes), mas é, também, falar de altruísmo. É falar de Lyn e de Luke, personagens anónimas, mas que travam, há anos de mais, batalhas que parecem superar em larga medida a força dos seus corpos. Lyn usa a formação médica para erguer um escudo invisível que apenas na ilusão a protege do turbilhão de sentimentos que diariamente a toma. Olhar para aquelas 29 crianças, na maioria órfãs, histórias de vida esfrangalhadas, e saber que vai ter de enterrar algumas é quase desumano. Mas ela continua, ainda que o seu espírito por vezes pareça aleijado, apoiado por muletas. De um lado a fé, do outro a determinação. "Não deixo morrer estas crianças". Mas mesmo que ela não queira, mesmo que ela não deixe, já perdeu 26 em sete anos. De um total de 193 a quem abriu os braços.
Lyn adoptou um bebé com Sida. Nove anos depois, fala dele como um filho. É a mãe e o pai. "Mesmo com esta idade ainda sofre os efeitos de ter sido abandonado à nascença", conta. "Quando começamos, percebemos que não havia condições para acolher crianças com HIV", conta, enquanto um pequenote lhe puxa por uma perna. "Olhem para as crianças e desafio-vos a descobrir alguma doença". Na realidade, não fossem os horários das tomas de medicamentos que forram as paredes e as múltiplas restrições (entre outras, as crianças estão impedidas de sair a partir das cinco da tarde, para não se constiparem) e ninguém diria tratar-se de uma casa-abrigo para menores com Sida.
Porém, aquele santuário é um retrato cor-de-rosa num país onde a realidade da Sida se pinta de negro. A esmagadora maioria das casas em Joanesburgo, num total de 60, não possui condições dignas para acolher crianças. Lyn arrasta-nos até ao computador e prova-nos a tese. Numa pasta intitulada children with the lord (em Português, crianças com o Senhor), mostra-nos a fotografia de uma menina de seis anos que foi depositada à sua porta, vinda de um desses centros. "Você chamaria a isto o quê? Uma criança? Ou um esqueleto?" Aquele desnudo amontoado de ossos que se vê numa banheira é, tragicamente, o rosto da Sida em África. Lyn verte uma lágrima. Chamou-lhe Lilly. Engordou 10 quilos. E morreu. No quarto azul, onde morrem todos.