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A vida está cada vez mais cheia de gente, mas tem cada vez menos pessoas. Há gente em abundância, gente debaixo de cada pedra digital, gente que diz e desdiz, gente que ataca e contra-ataca, que comenta e descomenta, gente da malícia, gente da bondade - em todo o caso, uma grande quantidade de vozes.
Dá a ideia de que encontrar uma pessoa no meio de tanta gente é um achado. Alguém inteiro, uma pessoa de alto a baixo, constitui uma raridade. Acontece-me ligar a televisão e pensar, sobretudo quanto a certo comentariado, que se trata de gente do espectáculo, veículos de vozes não exactamente pessoais: entretêm-nos, mas, se as abrirmos, damos de caras com falta de recheio.
Parte disto é culpa minha, que já tenho idade para estar cansado de encontrar tão poucas pessoas no meio de tanta gente. E parte é culpa de algo que está a mudar ou já mudou: o espaço público. À ideia boa de que cada pessoa tem uma voz não corresponde a boa ideia de que cada voz tem uma pessoa. Quer dizer, em vez de vivermos rodeados de opinião, vivemos rodeados de emoção.
É que a verdadeira opinião vem de um sítio complexo e fascinante que só se pode guardar dentro de uma pessoa. Já a emoção, disfarça-se de opinião e passa bem sem grande resguardo. Mas é ela que chama, ela que cativa. Basta abrir as redes sociais: estão cheias de gente indignada, cheias de gente ferida, de gente emocionada - mas é difícil encontrarmos aí uma pessoa. No meio de tanto barulho, não se faz ouvir quem tem opiniões fundamentadas, sensatas, com complexidade e nuances, sem segundas intenções.
Até porque dá trabalho, e trabalhar é coisa que a gente emocionada dispensa. Embora tenhamos acesso abundante às fontes, dos decretos-leis às actas e aos comunicados, das conferências de imprensa aos directos e sei lá que mais, é mais fácil dispensar a sua consulta e opinar livremente. E mais fácil falar das coisas reagindo ao que os outros dizem delas - numa cadeira de reacções cujo referencial entretanto se perdeu.
Quanto à comunicação social, age cada vez mais em conformidade, porque o pão escasseia. Excepto alguns bastiões, já vivemos para lá do clickbait, porque essa técnica era, na hipótese mais benevolente, um meio para atingir um fim. Desde que o fim não fosse mau, ainda se tolerava o meio. O problema é a profusão de notícias que não são notícias: são formas de nos capturar a atenção através da emoção. E, nisto, roubam-nos o tempo, o nosso bem mais preciso.
E cá estamos nós, rodeados de gente e sem tempo: talvez esta seja uma boa definição de distopia. Uma vez por outra, no meio de tanta gente aparece alguém. Uma pessoa. É como se fosse feriado: fica-se logo mais bem-disposto por passarmos o tempo em boa companhia.
*O autor escreve segundo a antiga ortografia