O tema aqueceu a semana política e gerou fortes críticas de vários quadrantes políticos e sectores académicos, obrigando Pedro Passos Coelho a recuar na sua intenção de reforçar os poderes do presidente da República, no âmbito da proposta de revisão constitucional que o PSD vai apresentar à Assembleia da República, em Setembro.<br />
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Na primeira versão do anteprojecto de revisão constitucional constava a possibilidade de o chefe de Estado demitir o Governo e nomear um novo, sem a obrigatoriedade de dissolver o Parlamento, o que alguns viram como "um retrocesso histórico" e uma promoção do desequilíbrio das instituições democráticas.
Portugal passaria, desta forma, de um modelo político semipresidencial (em vigor desde a revisão constitucional de 1982) para um regime presidencial, promovido pela Constituição de 1976, em que o chefe de Estado passaria a ser co-responsável pela governação do país e não apenas um moderador e árbitro.
"Retrocesso histórico", promoção das "tendências 'cesaristas'" e "desequilíbrio de poderes entre instituições democráticas" foram alguns dos argumentos apresentados por quem, como Gomes Canotilho e Jorge Miranda, se manifestou contra o aumento dos poderes do presidente da República.
Mas há também quem, como Paulo Pinto de Albuquerque, considere que a proposta social-democrata visa "aumentar a estabilidade das instituições", principalmente "num quadro de crise política", em que a solução possa ser encontrada sem recurso a novas eleições.
Há, pelo menos, um ponto em que o consenso prevalece. O do debate suscitado em torno da Constituição pela sociedade e não apenas pela classe política e académica.
Desde a revisão constitucional de 1982 que o presidente da República detém (entre outros) poderes supremos de moderação e arbitragem das diferenças entre os diversos actores políticos concorrentes e de garantia do regular funcionamento das instituições democráticas. "A evolução mais significativa em matéria de poderes presidenciais ocorreu, de facto, com essa revisão, uma vez que, até então, o Governo era politicamente responsável perante o Parlamento e o presidente da República", explica Tiago Duarte, professor de Direito Constitucional na Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa.
Circunstância que colocava o Governo numa situação de "extrema fragilidade", por ter de corresponder às pretensões da maioria parlamentar, do chefe de Estado e às dos seus membros. "Em 1982, optou-se por eliminar esta espécie de 'triângulo das Bermudas' e focar a responsabilidade política do Governo apenas perante o Parlamento", frisa Tiago Duarte.
Para alguns especialistas, esta alteração configurou uma redução dos poderes presidenciais, uma vez que o chefe de Estado deixou de ser co-responsável pela actuação do Governo. Mas Maritheresa Frain, em Relações entre o Presidente e o primeiro-ministro em Portugal: 1985-1995, rejeita essa tese, afirmando que "os poderes presidenciais de direcção política foram reduzidos, enquanto os de moderação e arbitragem aumentaram".
Foi a hipótese de regresso a um modelo semelhante ao criado pela Constituição de 1976 - em que o chefe de Estado governava e se co-responsabilizava pela actuação do Governo, uma vez que, por inerência, era o presidente do Conselho da Revolução -, que provocou as críticas mais acesas à proposta de anteprojecto de revisão constitucional que o PSD quer apresentar à Assembleia da República em Setembro. Críticas feitas, inclusive, por militantes com peso no partido - como Pedro Santana Lopes, Pacheco Pereira e Marques Mendes - e na Direita nacional - como Lobo Xavier.
Em declarações, esta semana, à Rádio Renascença, o constitucionalista Jorge Miranda (que em 1976 pertencia à Assembleia Constituinte), alertou para o facto de que a possibilidade do chefe de Estado poder demitir o Governo sem dissolver o Parlamento representar "um aumento extraordinário dos poderes do presidente da República". O que transformaria "o sistema de Governo num sistema presidencial", explicou.
Para este professor de Direito da Universidade de Lisboa, a proposta social-democrata vai contra "a experiência histórica portuguesa", sendo "sempre extremamente perigoso, pelo menos, para o equilíbrio das instituições", o aumento de poderes de um determinado órgão.
O sistema semipresidencial existente em Portugal desde 1982 é inspirado no modelo francês e começa a ser adoptado por quase todos os países da Europa de Leste, refere o professor da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa. Tiago Duarte diz ainda não ver "vantagem de o presidente da República poder nomear um Governo formado pelos partidos menos votados. Um Governo dessa natureza teria legitimidade democrática enfraquecida, além de que não parece muito verosímil uma coligação estável e duradoura, para formar Governo, entre o segundo e terceiro partidos mais votados", afirma. "E os eleitores jamais entenderiam uma decisão destas", acrescenta.
Por seu turno, Filipe Carreira da Silva, do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, alerta para o facto de, a escassos meses de eleições presidenciais, uma proposta neste sentido será "inevitavelmente identificada com os interesses do PSD nessa eleição. Fica assim gorada a possibilidade de se discutir o nosso sistema de governo com a clareza e tranquilidade necessárias", declara.
Além disso, continua, a ideia de aumento dos poderes presidenciais potenciaria aquilo que chama de tendências "cesaristas", que "existem em praticamente todos os regimes políticos e que entre nós são particularmente fortes". Filipe Carreira da Silva esclarece: "O recurso a figuras mais ou menos carismáticas foi, historicamente, uma opção mais popular em Portugal do que a confiança em instituições como os partidos. Num momento em que o cepticismo da população portuguesa face aos partidos e ao parlamento é grande, talvez fosse mais prudente apostar-se no reforço e reabilitação da instituição parlamentar (e do poder local) do que no reforço da instituição presidente da República".
Paulo Pinto de Albuquerque, professor de Direito na Universidade Católica Portuguesa, discorda. "O poder do presidente da República demitir o Governo sem recorrer à dissolução do Parlamento faz todo o sentido quando haja uma crise política que possa ser resolvida por um novo governo dentro do mesmo quadro parlamentar", sustenta. Para Albuquerque, "trata-se de evitar uma solução drástica de dissolução da Assembleia da República, quando possa ser escolhido novo Governo sem eleições".
Mandatos mais longos?
Mais consensual tem sido a proposta de prolongamento dos mandatos, de quatro para cinco anos no caso do Governo, e de cinco para seis, no caso do presidente da República. Mas também neste ponto, há vozes discordantes. Enquanto Paulo Pinto de Albuquerque considera que o aumento do tempo dos mandatos "visa aumentar a estabilidade das instituições", Tiago Duarte refere que, especialmente no caso do chefe de Estado, é excessivo, "se tivermos em conta que, até ao momento, todos os presidentes da República foram reeleitos. Doze anos de mandato parece-me excessivo. Concordaria num mandato mais longo se não houvesse possibilidade de reeleição", sustenta.
Tese seguida pelo constitucionalista e professor catedrático Gomes Canotilho, que ontem, no seminário Constituição: responsabilidade e direitos sociais, classificou a proposta social-democrata de "anti-republicana". "Quando precisamos do refresco da legitimação dos cargos políticos, alteram o mandato do presidente da Repúblicapara seis anos. Depois, propõem o Governo com cincos anos, mas, ao mesmo tempo, uma moção de censura simples que conduz à dissolução da Assembleia da República, pondo em causa a sobrevivência de qualquer Governo minoritário, o que é uma contradição", disse.
Apesar das reticências, Tiago Duarte afirma que esta tem "o mérito de suscitar o debate sobre a Constituição, que não apenas no seio da classe política e académica".