Nem sempre o corte com as memórias de infância e os locais onde fomos felizes é um processo fácil. Para Vergílio, o protagonista de A Vida Verdadeira, esse é um passo de tal forma doloroso, que só a ideia de ter que o dar lhe causa uma angústia terrível.
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Obrigado a vender a quinta onde sempre viveu (que irá dar lugar a um condomínio moderno), separado dos pais e da irmã mais nova (com quem teve uma relação quase incestuosa), Vergílio decide continuar agarrado a esse passado ao decidir tornar-se escritor. Nesta entrevista, Vasco Luís Curado, psicólogo clínico de formação, revela que este seu segundo romance tem muito de autobiográfico e o ajudou a encerrar o seu próprio capítulo da infância.
Quem é Vergílio, o protagonista dest' A Vida Verdadeira?
O Vergílio é um jovem adulto, que está à beira de sair da casa dos pais - que representa para ele a infância e todas as memórias do passado - e que está prestes a dar o salto para fora. O que para ele não será fácil, porque tem que se confrontar com as exigências da vida prática, da vida útil, quotidiana. E ele, como sonhador nato, não se sente preparado para isso.
É alguém que vive preso ao passado, que recusa a aceitar a realidade.
Ele teve uma mãe super-protectora, um pai fantasista e megalomaníaco, uma relação simbiótica, quase incestuosa, com a irmã, e nada disso o preparou para a vida comum. Por isso, ele sonha com uma vida imaginária, que corre paralelamente à vida prática, quotidiana, e que para ele parece mais verdadeira do que esta última.
A relação que o Vergílio tem com a irmã é, de facto, estranha. São tão próximos e dependentes um do outro que, inclusive, passam muitas vezes por casal.
Esta relação incestuosa, ou simbolicamente incestuosa, representa o fechamento deles perante o mundo. É um prolongamento da infância. Se nós prolongassemos a nossa infância, seríamos todos incestuosos. Os irmãos e os pais são sempre os nossos primeiros objectos de amor. Largar, abandonar os objectos incestuosos, descobrir outros, é uma conquista que se faz com o tempo, com o amadurecimento. Estes dois estão envolvidos com a infância, com esse enclausuramento na casa de família, nas memórias, no passado. O incesto aí é naturalíssimo. Embora eu continue a preferir um incesto simbólico entre eles.
Este fechamento da família denuncia algum tipo de patologia?
Parafraseando a primeira frase de Tolstöi na Anne Karenina, "Todas as famílias parecem normais vistas de longe e parecem patológicas vistas de perto". Não sei se esta família é mais patológica do que as outras. Como no livro a examinamos de perto, ela parece patológica. Mas não serão todas, se fizermos a mesma análise, o mesmo exame aprofundado?
E são?
Penso que sim. Todas as famílias parecem normais vistas à distância, exteriormente, e parecem patológicas vistas de perto.
Vergílio confronta-se com um grande dilema, que é o de ter que abandonar a casa da infância, que será demolida para dar lugar a um condomínio. Uma vez mais, balança entre o passado e o que será o futuro, o progresso, que não se pode travar.
Não se pode travar o progresso, que às vezes colide com as nossas predilecções, com o nosso apego ao passado. Mas acho que ele vai continuar a proteger aquele casulo de memórias porque vai construir um lugar imaterial. O percurso dele para fora desta casa coincide com um percurso intelectual em direcção à escrita. Ele está na iminência de se assumir como escritor. Vai abandonar o projecto antigo de ser um cientista, que nunca concretizou, e aproxima-se da escrita. Fica por saber se vai concretizar esse projecto de ser escritor. Mas ele agora assume-se como um escritor.
Há uma frase dele que resume a sua vida: "Toda a minha vida foi uma preparação para algo que nunca chegou, ou a que eu nunca cheguei". Podemos acrescentar que não é o único?
Acho que há muitas pessoas assim, que se preparam eternamente para qualquer coisa, que às vezes é clara dentro da cabeça delas, mas o risco de uma pessoa se querer preparar antecipadamente é o de poder nunca estar verdadeiramente preparada. Não temos que estar verdadeiramente preparados para as coisas novas, porque acabamos por não passar pelas experiências.
Onde foi beber para construir esta história?
Em parte, à minha própria vida. A autobiografia e a ficção não têm uma fronteira estanque. Pelo menos, agrada-me a ideia de que assim seja.
Também teve uma relação simbiótica com os seus irmãos?
Apresso-me a dizer que não há nada de incestuoso no meu passado. Isso é totalmente ficção. Mas há outras coisas que são autobiográficas.
Também tem esta dificuldade em deixar o passado lá atrás?
Por causa dos livros que estou a escrever agora, há tempos estava a pensar que, por contraste, este pareceu-me como que o encerrar do capítulo da infância. Parece que com A Vida Verdadeira estou a pôr ordem em algumas coisas, interiormente, pessoais, e é como se essa etapa estivesse encerrada. Porque o que estou agora a escrever parece estar mais virado para o mundo exterior, numa socialização mais avançada. Talvez o livro cumpra esta função, de ter fechado uma etapa.
Escrever este livro foi como que um exercício de psicanálise.
Sim, pode-se dizer, se bem que na literatura se deve desconfiar muito da psicanálise e da psicologia. A análise psicológica é muito perigosa para a literatura. Funciona como um ácido corrosivo. Psicologia e psicanálise são boas porque podem fornecer material humano, mas quando chega a hora de interpretar, deixa de ser tão interessante.