O Bica do Sapato, icónico restaurante de Lisboa, voltou à vida com novo rosto, mas com o mesmo espírito fundador, após seis anos de adormecimento. O espaço em Santa Apolónia, com 250 lugares, servirá pequenos-almoços e take-away.
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No ar paira uma atmosfera vibrante, sinal da energia coletiva apostada em dar continuidade aos gloriosos tempos do Bica do Sapato. Fundado num centenário armazém ribeirinho em Santa Apolónia, em 1999, pelo grupo Manuel Reis (fundador do bar Frágil e do Lux), Fernando Fernandes e José Miranda (proprietários do antigo Pap"Açorda) e tendo John Malkovich como sócio, o espaço marcou a cena gastronómica lisboeta pela modernidade e disrupção - já com sushi-bar, cafetaria, restaurante de fine dining e esplanada - e encerrou volvidas duas décadas.
"Segundo alguns funcionários nos contaram, o auge dele terá sido entre 2005 e 2014", conta à Evasões o brasileiro Celso Assunção, em Portugal há mais de 20 anos e experiente na gestão de hotéis de luxo com foco gastronómico. Ele e o lisboeta Francisco Lacerda, formado na área da comunicação empresarial, são os rostos à frente do investimento na revitalização do Bica do Sapato, um "projeto de paixão" que os seduziu no decurso de um negócio imobiliário. "A gestão tinha de ser entregue a alguém que tivesse a mesma visão que nós para o projeto", explicam.
A verdade, porém, é que "não ia ser fácil encontrar alguém que assumisse a gestão nos nossos moldes, [por isso] veio à tona a experiência do meu sócio" em hotelaria de topo, como o Farol Hotel ou o Vila Joya, diz Francisco. "Quando idealizámos o Bica, [decidimos que] não queríamos fazer um museu do passado, mas também não [o] queríamos atropelar", explica Celso, elencando as novidades que se fazem notar ao fim dos seis anos de pausa, em 2019. A reabertura, ainda progressiva, deu-se a 7 de agosto, para gáudio de todos os antigos clientes.
As janelas do chão ao teto; o chão de pedra original, a singular lareira e a garrafeira imponente mantiveram-se. Caminhando pela grande área desimpedida que brinda os clientes com vista sobre o Tejo, com o balcão do bar em betão à esquerda e cortinas suspensas a separá-lo da sala, o empresário diz que "os clientes agora chegam e veem que mudou tudo, mas não sabem o que mudou". Foi uma intervenção detalhista, com pinças, que mesmo aos olhos de quem nunca lá esteve revela o respeito pelo legado e o cuidado de atualizar a acústica e a térmica.
"Manuel Reis foi visionário ao trazer para o Bica do Sapato o que de melhor existia no Mundo em termos de design vintage", lembra Celso Assunção. "Nós fizemos o oposto", diz, ao convocar algumas das mais destacadas vozes do design contemporâneo português para o projetar ao nível internacional. Os contributos estão à vista nas cortinas "vintage futurista" da artista têxtil Maria Appleton que ritmam o pé direito de quase cinco metros; na iluminação de Joana Forjaz, adaptada às fases do dia; e nas fardas desenhadas por Constança Entrudo.
Únicas são também as bicas de cerveja e as mesas desenhadas pelo arquiteto Manuel Aires Mateus - que supervisionou o projeto a cargo de Francisco Tojal -, bem como as cadeiras desenhadas por Daciano da Costa e pelo Estúdio Branca Lisboa, de Marco Sousa Santos. Nas mesas, pratos da Molde Ceramics, talheres desenhados por Aires Mateus e produzidos pela Cutipol, e um conjunto de facas de cortar cujos cabos foram produzidos com a madeira reaproveitada do antigo "deck" da esplanada, por um elemento da equipa de cozinha experiente em serralharia.
Uma cozinha a vários tempos
Milton Alves cozinhava no Epicure (três estrelas Michelin) no hotel parisiense Le Bistrol quando foi contactado para ouvir o que os novos donos do Bica do Sapato tinham para lhe propor. Chegou com a escola francesa, de grande rigor técnico, e acima de tudo motivado com a oportunidade de se "rodear de profissionais válidos no mercado", e "muito contente" com os seus sous-chefs. "Ser a Bica do Sapato é um peso que estou disposto a carregar", afirma, confiante, sem olvidar que pela casa "emblemática" passaram chefs renomados e estagiários que hoje também o são.
Celso Assunção descreve a sua cozinha como "urbana, moderna, sofisticada e saborosa", algo que Milton, de 38 anos, faz questão de manter português. E se, no início, a ideia foi revitalizar o repertório clássico do Bica do Sapato, optaram antes por "não viver apenas disso". No interior e na esplanada sombreada, com 50 metros de frente de rio, o menu convida a partilhar - "ou não" - pratos como o lascado de beterraba com vinagrete de chalotas e dukkah egípcio e o tiradito de lombo de lírio de atum dos Açores com leche de tigre com coentros, duas das 14 sugestões.
Nesta cozinha de produto sazonal e aproveitado até ao expoente máximo cabem também, nos principais, propostas como raia assada e pombo royal assado e macerado em piment de timut, com cerejas glaceadas em amaretto, amêndoas e jus de avelã. Aproveitando as partes menos nobres dos animais, Milton Anes criará pratos "tão ou mais criativos do que estes" para o Trinca o Sapato, no mezanino, cuja proposta será mais casual e de comer com as mãos. Caberá ao chef Hugo Guerra (dono e chef do Lobo Mau) o comando, no seu regresso ao Bica do Sapato.
A cargo de Joaquim de Souza - que, por coincidência, nasceu em Paris tal como Milton Anes - está a criação dos doces e sobremesas, pensados para apelar à "emoção e à memória". O autor da flor de chocolate que, a partir do hotel The Oitavos, em Cascais, correu o Mundo, diz inspirar-se nas sobremesas clássicas francesas, trabalhando-as com ingredientes que possam fazer a diferença. Uma das criações já elogiadas, por não abdicar do prazer apesar da menor quantidade de açúcar, é o praliné de chocolate com sementes de abóbora no lugar da avelã.
Bica do Sapato
Avenida Infante D. Henrique, Armazém B, Cais da Pedra, Santa Apolónia, Lisboa
Tel.: 210 474 288
Web: bicadosapato.com
Das 12h às 18h e das 19h às 22h30, à terça e quarta; até às 23h de quinta a sábado. Sexta e sábado, DJ das 21h30 à 1h30.
Em breve, começará a servir pequenos--almoços e take-away.
Preços médios sem bebidas: 80 euros (restaurante), 40 euros (Trinca o Sapato)