À medida que a peste suína africana assola a maior população pecuário da UE, investigadores pretendem desenvolver uma vacina para travar a propagação da doença e proteger milhões de animais.
Corpo do artigo
O destino de milhões de porcos na Europa pode ser decidido no inverno que se aproxima numa floresta húngara. Aí, os investigadores da UE planeiam testar uma vacina contra a peste suína africana em javalis.
A peste suína africana, ou PSA, é uma doença viral que ameaça porcos selvagens e domésticos por toda a Europa. Sem vacinas ou curas para a PSA, por norma os surtos matam os porcos infetados e, frequentemente, levam ao abate direcionado das populações das explorações suínas domésticas para evitar a propagação da doença para outras explorações.
O grande teste
Nos bosques húngaros, ainda por selecionar, os investigadores tencionam colocar pedaços de isco com uma vacina experimental contra a PSA desenvolvida com financiamento da UE. O objetivo é imunizar cerca de 300 javalis.
"O maior problema na Europa, neste momento, são os javalis infetados", afirma José Manuel Sánchez-Vizcaíno, professor de saúde animal na Universidade Complutense de Madrid, em Espanha. "Se reduzirmos a doença nos javalis, é provável que não tenhamos de vacinar os porcos domésticos." Sánchez-Vizcaíno lidera um projeto de investigação denominado VACDIVA que produziu a vacina experimental contra a PSA com a ajuda de mais de 9 milhões de euros de financiamento da UE. Tal, representa cerca de 90% do custo total do projeto, que será prolongado até julho de 2024, em relação à data originalmente prevista para este mês.
Embora a PSA seja inofensiva para as pessoas, põe em risco o setor suinícola europeu, que movimenta milhares de milhões de euros. A UE tem cerca de 130 milhões de suínos – a sua maior categoria de gado – com as maiores populações em Espanha, Alemanha, França, Dinamarca e Países Baixos.
A PSA pode alastrar-se através dos javalis, das pessoas e, inclusive, de carnes curadas. Tal deve-se ao facto de poder sobreviver em roupas, botas e rodas, bem como em produtos derivados da carne de porco, como fiambre e salsichas que são descartados pelas pessoas e consumidos pelos javalis.
Propagação para oeste
A doença está a propagar-se para oeste na Europa, tendo sido detetados os primeiros casos em explorações de suínos na Bósnia-Herzegovina e na Croácia em junho de 2023. Os países afetados incluem também a Alemanha, a Bulgária, a Chéquia, a Grécia, a Itália, a Letónia, a Polónia e a Roménia.
Além de ser uma ameaça fatal para os porcos, a PSA é uma ameaça económica para os criadores de porcos da UE. A morte dos animais reduz o valor da atividade e os surtos implicam restrições onerosas, incluindo ao comércio.
"As zonas afetadas pela PSA sofrem perdas financeiras significativas", afirmou a Autoridade Europeia para a Segurança dos Alimentos em maio de 2023.
A UE é o maior exportador mundial de carne de porco e o segundo maior produtor – a seguir à China – desta carne.
Num esforço para travar a propagação da PSA, a China teve de abater mais de 1 milhão de porcos desde agosto de 2018.
Avanços em Madrid
A vacina experimental do VACDIVA, uma colaboração internacional que envolve laboratórios de Europa, África e China, surgiu depois de ter sido testada num centro de investigação em Madrid.
Os javalis aí mantidos foram alimentados com a vacina e provaram estar protegidos contra a PSA.
O estudo húngaro permitirá testar javalis e identificar quantos consumiram o isco com a vacina. Sem essas informações, os investigadores não saberiam como está a progredir uma campanha de vacinação.
A esperança é que esteja amplamente disponível uma vacina por volta do final de 2024 ou em 2025. O caminho até aqui esteve longe de ser direto, tendo a investigação anterior financiada pela UE feito parte dos esforços para fazer progressos.
Um vírus que muda de forma
Há muito que os cientistas sabem que apenas um vírus vivo funcionaria como vacina contra a PSA. Contudo, quando foi utilizado um vírus enfraquecido para vacinar porcos em Espanha e Portugal na década de 1960, os animais ficaram, por vezes, extremamente doentes.
Tal, deveu-se ao facto de o vírus mudar de forma à medida que se replica nos animais, tornando-se por vezes mais fraco e por vezes mais forte.
Parte da história é que a PSA é causada por um vírus de DNA muito grande - com 180 genes - em comparação com, digamos, 10 no vírus da Covid-19. Isto permite à PSA assumir novas formas nos animais.
"Durante muito tempo nem sequer procurámos uma vacina porque conhecíamos os problemas que uma má vacina pode causar nos animais", afirmou Sánchez-Vizcaíno.
Então algo aconteceu. Na última década, os avanços na área da genética permitiram aos cientistas conhecer melhor o vírus e os meios para alterar o seu genoma.
Os investigadores utilizaram novas ferramentas de edição de genes para reduzir o ADN viral até ficarem apenas com o essencial. Criaram um vírus que era uma amostra do que outrora foi, com um punhado de genes escolhidos imunologicamente para injetar os porcos o suficiente para lhes conferir imunidade.
É essa a vacina que será utilizada no estudo planeado para a Hungria. A mesma vacina, em doses menores, deve ser o suficiente para explorações suínas, caso surja a necessidade.
"Os javalis são mais resistentes à peste suína africana, pelo que podemos utilizar doses mais elevadas de vacina para eles", afirmou Sánchez-Vizcaíno.
Portos de entrada
Apesar de se ter propagado para a Europa em 2023, a PSA tem estado até agora fora de países como a França, Espanha ou Portugal.
No entanto, bastaria que uma pessoa que desembarcasse de um navio em qualquer um desses países deitasse fora uma sandes de fiambre contaminada para que um javali a comesse e ficasse infetado.
"Não existe uma fortaleza na Europa no que diz respeito às doenças animais", afirmou Ludek Broz, diretor do departamento de antropologia ecológica do Instituto de Etnologia da Academia das Ciências Checa, em Praga.
"E é difícil entender a propagação desta doença sem ter em conta os seres humanos."
Broz estuda a PSA e a sua interação com caçadores e veterinários no âmbito de outro projeto financiado pela UE. Denominada BOAR, a iniciativa de investigação tem uma duração de cinco anos, até junho de 2025.
A chegada mais recente da PSA à Europa ocorreu em 2007, na Geórgia, quando restos de alimentos de um navio foram dados a porcos domésticos no porto de Poti. A partir daí, o vírus propagou-se para a Rússia e para oeste, chegando à UE em 2014, na fronteira da Lituânia com a Bielorrússia.
A doença em si existe há milénios em África, entre os javalis desse continente, normalmente sem causar sintomas. Foi identificada pela primeira vez no Quénia na década de 1920, quando adoeceu os porcos domésticos que os colonos europeus trouxeram consigo.
"A história da peste suína africana é uma história colonial", afirma Broz.
Todos a bordo!
Entre outros aspetos, centra-se nas atitudes dos caçadores e das autoridades veterinárias perante a doença.
Quando Broz viajou para a Ucrânia em 2023, reparou que, na fronteira com a Eslováquia, a maioria dos controlos eram para produtos alimentares ilegais. Os caçadores também foram recrutados pelas autoridades veterinárias para ajudar a travar a doença.
Frequentemente, os caçadores foram encarregues de recolher carcaças de javalis, pois podem ser a fonte do vírus para os javalis vivos. Esta foi uma questão que causou desacordo entre os investigados até recentemente.
"Se deixarmos uma carcaça de um porco e de um veado numa floresta, o javali apenas come o veado", afirmou Broz. "No entanto, após cerca de dois meses, numa determinada fase de decomposição, o javali começa a comer a carcaça do javali."
Este é um grande desafio porco o vírus da PSA pode sobreviver em carcaças durante muitos meses.
Broz também está interessado nas atitudes do público em relação a uma vacina contra a PSA, especialmente à luz das afirmações de alguns segmentos da sociedade ocidental durante a pandemia de Covid-19, questionando a eficácia e a segurança dessa medida de saúde para as pessoas.
Este espera que a iniciativa BOAR possa contribuir para a compreensão das atitudes das pessoas e para impedir que a PSA se alastre de forma destruidora pela Europa. Este artigo foi originalmente publicado na Horizon, a Revista de Investigação e Inovação da UE.