Inquéritos em curso no Ministério Público e Segurança Social. Antigos utentes e ex-monitores garantem que denunciaram casos, mas nada foi feito.
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Ao longo dos últimos quatro anos, a casa de acolhimento da Fundação Lar Evangélico Português, que acolhe crianças e jovens em perigo sinalizadas pela Segurança Social, foi palco de repetidos abusos sexuais, relações sexuais consentidas entre rapazes e raparigas e consumo de drogas.
Há menos de um mês, um adolescente, de 17 anos, foi preso por violar outros três utentes, mais novos, anos depois de ele próprio ter sido vítima de abusos. Também no lar de idosos da mesma fundação os cuidados de higiene e a vigilância aos utentes terá sido negligenciada devido à falta de pessoal, caso de que o JN dará conta na edição de amanhã.
A denúncia é feita por antigos utentes e ex-funcionários da instituição sediada em Águas Santas, Maia, que garantem que a direção do Lar Evangélico foi informada dos sucessivos casos, mas nada fez para os evitar e punir. Ao JN, a Procuradoria-Geral da República confirma a existência de investigações, tal como a Segurança Social.
João Duarte, que liderou o conselho de administração da instituição no último mandato, nega a impunidade, assegurando que todos os episódios foram reportados às entidades competentes e medidas corretivas foram tomadas.
Abusos no corredor e no WC
"Eu estava no fundo do corredor, ouvi um barulho e fui tentar perceber o que se estava a passar. Vi o António [nome fictício] a fazer sexo com o João [outro nome fictício]. No dia seguinte, fui contar o que vi ao diretor técnico que, dois dias depois, disse-me que não tinha provas e que não podia fazer nada", relata Luís Pinto, de 18 anos, ex-utente do casa de acolhimento. Um dos rapazes denunciado por Luís forçava regularmente os colegas mais novos a práticas sexuais, mas manteve-se no Lar Evangélico até ao mês passado, altura em que foi detido pela Polícia Judiciária.
O JN sabe que outros abusos sexuais, alguns dos quais ocorridos nas casas de banho e tendo como vítimas utentes com deficiência mental, foram descritos pelos monitores no livro de registo de ocorrências da instituição e relatados ao diretor técnico, Joaquim Sousa. Contudo, dizem esses monitores, nada foi feito para colocar um ponto final nesses crimes e os abusadores continuaram a viver na mesma casa das vítimas. Estas não foram as únicas situações denunciadas.
"Vi dois colegas [um rapaz e uma rapariga] a praticar atos sexuais no sofá da sala comum, apenas com um cobertor a tapá-los e em frente a toda a gente. Estávamos todos, mais novos e mais velhos, a ver televisão e só havia um monitor na casa, que tinha de ir a todo o lado", recorda Juliana Santos. Juliana abandonou a instituição maiata em outubro do ano passado, após sete anos a viver ali, e agora conta que, em várias ocasiões, foi ela quem levou os utentes mais novos à escola. "Levava os sete meninos todos de uma vez, porque não havia monitores suficientes para fazer todo o serviço. Eram os próprios técnicos que me pediam", justifica.
A falta de monitores para vigiar os utentes é também a razão apontada por Leandro Costa, outro ex-utente, para explicar os desmandos no centro de acolhimento, ao longo do dia e da noite.
"António" passou de vítima a agressor
"António" (nome fictício) foi colocado pela Segurança Social no Lar Evangélico quando tinha apenas seis anos, depois de ter sido retirado à família, na sequência de um processo relacionado com violência doméstica. Desde o início, protagonizou episódios de agressividade para com colegas e exigiu, segundo apurou o JN, "atenção mais cuidada" dos monitores.
Em 2015, aos 14 anos, tudo piorou. O rapaz foi alvo de abusos sexuais por um utente mais velho do centro que, num só dia, fez duas vítimas, ambas rapazes. O caso foi denunciado, o agressor foi afastado e a segunda vítima transferida para outra entidade.
Registo por escrito
"António" ficou e foi no Lar Evangélico que, em 2018, passou de vítima a agressor. Fontes conhecedoras do processo revelam ao JN que, em setembro, o jovem forçou um utente a praticar sexo oral e, noutra situação, obrigou outro, na casa de banho das instalações do lar e durante a noite, a masturbá-lo. Estes abusos sexuais foram descobertos pelo pessoal responsável pela vigilância, comunicado ao diretor técnico e descrito no livro de ocorrências da instituição.
Mesmo assim, "António" continuou a dormir na mesma camarata dos restantes rapazes institucionalizados no Lar Evangélico. Facto que permitiu que, em fevereiro do ano passado, reincidisse. O caso foi, mais uma vez, registado no livro de ocorrências. Apesar de todas as denúncias, só no final de fevereiro deste ano o adolescente foi detido pela Polícia Judiciária. Indiciado dos crimes de violação e abuso sexual, praticados sobre com vítimas entre oito e 13 anos, "António" está em prisão preventiva.
O Lar Evangélico Português foi criado em 1948, no Porto, pelo pastor Joaquim Machado e a esposa Isménia Machado. Logo nesse ano começou por acolher crianças e idosos, de ambos sexos, sem família e sem dispor de qualquer outra estrutura de apoio. Os jovens ficariam na casa até atingir a maioridade e muitos prolongavam a sua estadia até ao casamento, sendo educados num contexto familiar, no qual a família do pastor, nomeadamente os seus seis filhos, assumia toda a responsabilidade.
O número crescente de pessoas acolhidas pelo casal obrigou o Lar Evangélico Português a mudar-se para instalações cada vez maiores até que, em 1966, fixou-se numa moradia situada em Águas Santas, Maia, doada à instituição. Foi nesse local que, três anos depois, foi construído um edifício com capacidade para acolher 80 crianças e, em 1977, a Terceira Igreja Evangélica Baptista do Porto, à qual a instituição esteve sempre ligada, comprou uma quinta para construir um lar de idosos inaugurado em 2000.
Nesta altura, o Lar Evangélico Português já se tinha transformado em fundação e adquirido o estatuto de utilidade pública. O acordo de cooperação com a Segurança social para o acolhimento de crianças em risco foi celebrado em 2005.