Aumentam as denúncias sobre pessoal não habilitado que realiza atos médico-estéticos. Vinte pessoas estão com termo de identidade e residência. Clínicos falam em "complicações graves" para a saúde.
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As queixas sobre pessoal não habilitado que realiza procedimentos médico-estéticos, como a aplicação de toxina botulínica (botox) ou de ácido hialurónico, estão a aumentar, praticando a maioria dos infratores um crime, como o de ofensa à integridade física. A Autoridade de Segurança Alimentar e Económica (ASAE) diz que tem mais de 50 processos em investigação e há 20 arguidos com termo de identidade e residência. Os médicos alertam para "complicações graves", desde infeções a deformações, e pedem mais atenção às autoridades, à reguladora e à Ordem dos Médicos.
"Denunciamos às autoridades competentes mais de 350 denúncias de casos de fisioterapeutas, enfermeiros, dentistas, esteticistas, cabeleireiros, profissionais de terapias alternativas e até veterinários, a praticarem e publicitarem, sem qualquer pudor, a prestação de cuidados médicos", aponta Diogo Figueiredo Gonçalves, dirigente da Sociedade Portuguesa de Medicina Estética (SPME).
O especialista revela que o fenómeno do intrusismo médico (exercício da profissão sem habilitação) é cada vez mais comum na área da medicina estética, já que há muita procura e os interessados movem-se pelos preços baixos. Há uma "sensação aparente de impunidade", defende o membro da SPME, daí ser "tão urgente que a Ordem dos Médicos intervenha".
Em média, os tratamentos com toxina botulínica podem rondar entre os 300 e os 600 euros e os de ácido hialurónico começam nos 200 euros, se aplicados por um médico.
Também a ASAE reconhece que "nos últimos anos se verificou um aumento do número de denúncias recebidas e respetivos processos, não só provenientes dos profissionais da área da medicina estética, mas também dos próprios cidadãos". Por vezes, os procedimentos clínicos feitos por não médicos são publicitados na Internet, aponta a autoridade ao JN.
Paciente ficou cego
O problema é tão grave, que se tornou recorrente tratar em clínicas de medicina estética e cirurgia plástica pacientes aos quais já foi aplicado botox ou ácido hialurónico e que ficaram com sequelas. De acordo com Duarte Salema Garção, diretor clínico da MyClinique, em Lisboa, as complicações mais comuns são "infeções e granulomas". O produto, "se mal aplicado, pode deixar as pessoas com nódulos, num resultado que devia ser harmonioso ".
Há inclusive situações que não conseguem ser resolvidas nas clínicas e são remetidas para outras especialidades médicas. "Tivemos um doente que perdeu a visão num dos olhos porque houve uma má injeção de ácido hialurónico", conta o médico. Foi enviado para oftalmologia. O intuito do tratamento era corrigir as olheiras.
queixas a aumentar
A Entidade Reguladora para a Saúde identifica a suspensão de atividade a um estabelecimento de saúde, em 2019, devido à aplicação de botox e de ácido hialurónico, porém, "não possui um indicador específico que permita identificar as reclamações recebidas apenas" sobre o tema. As queixas gerais sobre cirurgia plástica reconstrutiva e estética têm aumentado: foram duas em 2020, 15 em 2021 e 16 em 2022.
Um dos principais constrangimentos com os quais os pacientes se deparam é a "negação do tratamento ou do acompanhamento" pelo pessoal não médico, refere Diogo Figueiredo Gonçalves. Num dos casos tratados pela MyClinique, a trabalhadora de um salão de cabeleireiro disse à paciente lesada que o inchaço e as dores nas mãos eram "normais", depois de ter-lhe aplicado ácido hialurónico em casa.
A SPME acrescenta que quem quiser fazer um tratamento médico estético deve, além de verificar se o profissional está inscrito na Ordem dos Médicos, constatar se o clínico tem formação específica em Medicina Estética e quais as suas habilitações. "É um problema da regulação do ato médico em Portugal: qualquer médico pode fazer qualquer procedimento", explica Duarte Salema Garção.
A presidente do Colégio de Cirurgia Plástica, Reconstrutiva e Estética da Ordem dos Médicos, Fátima Barros, diz ser "impossível" saber quantos médicos realizam este tipo de tratamentos estéticos, porque abrange várias especialidades. Existem "regulamentos em estudo por um grupo de trabalho multidisciplinar" na Ordem.
Há 15 medicamentos aprovados em Portugal com toxina botulínica, uma substância ativa usada para tratar várias patologias e que só pode ser prescrita por um médico, segundo o Infarmed.
A ASAE aponta que em "dezenas de mandados de busca domiciliária e não domiciliária" foram apreendidos vários materiais, como toxina botulínica e lidocaína, um anestésico que foi importado ilegalmente do Brasil e é geralmente adicionado ao ácido hialurónico para causar menos dor. Ao JN, a Procuradoria-Geral da República diz não conseguir especificar quais as queixas relacionadas com tratamentos estéticos.
Números
6
meses é o tempo médio de duração dos efeitos da toxina botulínica, de acordo com o médico Diogo Figueiredo Gonçalves. Mas depende das características e do estilo de vida do paciente.
À lupa
Parecer
A Ordem dos Médicos emitiu um parecer, em fevereiro de 2020, sobre as "vulgarmente designadas clínicas de estética" em relação aos estabelecimentos prestadores de cuidados de saúde a pedido da Entidade Reguladora da Saúde (ERS).
Fiscalização
As ações de fiscalização na medicina estética têm sido feitas em conjunto pela ASAE, ERS, Ordem dos Médicos e Infarmed. A reguladora levou a cabo 11 ações a estabelecimentos, desde 2020, por indícios de irregularidades.
Normas
União Europeia vai regular uso de ácido hialurónico para fins estéticos
O ácido hialurónico é uma substância que existe naturalmente na pele, mas o sintetizado (ou seja, o artificial) é administrado para dar "volume ou hidratar", explica Duarte Salema Garção. Fora dos fins estéticos, o produto pode ser considerado um dispositivo médico e está abrangido por um regulamento europeu, caso "o fabricante lhe tenha atribuído uma finalidade médica e cuja ação principal não seja farmacológica, imunológica ou metabólica", explica o Infarmed. A título de exemplo, o ácido hialurónico é um dispositivo médico se for utilizado como injetável "para o alívio dos sintomas da osteoartrite". O regulamento europeu dos dispositivos médicos está atualmente em fase de transição e prevê que o ácido hialurónico, a substância propriamente dita, para fins estéticos seja também regulada. Fonte do gabinete da comissária europeia da Saúde, Stella Kyriakides, explica ao JN que a Comissão Europeia só pode adotar especificações comuns se os estados-membros emitirem um parecer positivo no Comité de Dispositivos Médicos, o que ainda não aconteceu. A última reunião do comité foi a 6 de julho deste ano.
Perguntas
Quais as diferenças entre botox e ácido hialurónico?
A toxina botulínica, geralmente designada botox, é um medicamento que "paralisa os músculos" e é usado em doses pequenas para disfarçar as rugas. Já o ácido hialurónico é uma substância que dá volume e hidratação e que existe naturalmente na pele.
Quem os pode administrar aos pacientes?
Os atos de medicina estética só podem ser realizados por médicos. No caso do botox, e sendo um medicamento, deve ser administrado e prescrito por clínicos. Um parecer da Ordem dos Médicos refere que a injeção de ácido hialurónico, com uma caneta pressurizada, pode ser feita por profissionais de saúde não médicos, mas com supervisão.
Em que crimes incorre quem aplicar sem ter formação?
As pessoas que realizam atos médico estéticos sem formação podem estar a praticar crimes de usurpação de funções médicas e de ofensa à integridade física. A ASAE revela que há outras "situações pontuais associadas", como o crime de falsificação de documentos e a contraordenação de prestação de cuidados de saúde em estabelecimento não licenciado.
Quais as penas?
Na usurpação de funções médicas, os infratores podem incorrer numa pena de até dois anos de prisão ou até 240 dias de multa. Na ofensa à integridade física, as penas dependem da gravidade do crime. Podem começar em um ano de prisão ou em 120 dias de multa.