Irmãos da noiva apresentaram queixa-crime de conservadora e oficial que registaram casamento em Guimarães.
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No dia 18 de março deste ano, na Conservatória do Registo Civil de Guimarães, foi celebrado o casamento de Manuel Teixeira Lima, de 95 anos, com Maria da Conceição Moreira Pacheco de Lima, de 68 anos, ambos residentes na Rua da Venda, em Fermil, na União de Freguesias de Veade, Gagos e Molares, em Celorico de Basto. Noivo e noiva são pai e filha, como se pode verificar pela certidão de nascimento que habitualmente é exigida nestas situações.
Há pelo menos uma irmã e um irmão – de um total de 12 (oito mulheres e quatro homens) – que já apresentaram queixa ao Ministério Público contra Maria da Conceição, mas visando também a conservadora e a oficial que fez o averbamento. “Só pode ter havido corrupção”, diz uma das oito irmãs de Maria da Conceição, inconformada com a possibilidade de, na Conservatória de Guimarães, não terem verificado a paternidade da noiva. Na certidão de nascimento de Maria da Conceição, lê-se que nasceu em 18 de fevereiro de 1957 e que é filha de Manuel Teixeira Lima e de Joaquina das Dores Moreira Pacheco. “Então a pessoa que está a celebrar o casamento não acha estranho que o nome do noivo coincida totalmente com o nome do pai da noiva?”, questiona a queixosa. A par de outro irmão, esta já se queixou ao Ministério Público e quer ver o casamento anulado. “Principalmente, em memória da minha mãe, que morreu há tão pouco tempo e não merecia isto”, justifica-se.
Manuel Teixeira de Lima ficou viúvo em outubro de 2024. Segundo a filha queixosa e alguns vizinhos, apresenta sinais de senilidade. Maria da Conceição, que em tempos foi cozinheira num lar local, há muito que não tem outro trabalho, além de olhar pelos pais. “Acredito que ela fez isto para se apoderar de, pelo menos, metade da reforma do meu pai, como viúva”, diz a irmã. O casamento teve por testemunhas outra das oito irmãs, Maria Manuela Moreira Pacheco de Lima, o namorado desta, Domingos de Magalhães Pires, e a nora da noiva, Maria da Fátima Freitas de Sousa.
Pensão de França
O noivo, que fará 96 anos em setembro, trabalhou muitos anos em França, de onde recebe uma pensão num valor entre 2500 e os três mil euros, tem a moradia onde vive com a noiva e terá algum dinheiro, conta a filha queixosa, dizendo que a sua mãe também terá deixado bastante ouro.
A queixosa, que o JN contactou ontem à tarde, afirma ainda que há evidências de levantamentos de quantias a rondar os 20 mil euros da conta do pai e relata o desaparecimento recente do ouro que a mãe tinha.
Na caixa do correio da casa da família, em Fermil, é possível ler os nomes de Manuel Teixeira de Lima, da falecida esposa e da filha Maria da Conceição, que sempre viveu com os pais.
Ontem, apesar de o JN ter tocado insistentemente a campainha dos dois portões da propriedade, ninguém atendeu. “Talvez seja melhor assim, é uma gente muito conflituosa, nunca se sabe o que pode acontecer”, comentou um morador que estava de passagem.
Uma família numerosa e com fama de ser conflituosa
Nenhum dos vários habitantes da localidade de Fermil com quem o JN conversou sobre este caso, em reportagem realizada ontem à tarde, quis ser identificado. E a pessoa que indicou a localização da casa de família pediu, a seguir, para a deixarem afastar-se, antes de tocarmos à campainha.
Há relatos e violência não só dirigida a terceiros, mas entre a própria família, nomeadamente em dias festivos, quando estavam todos reunidos. Um vizinho relata um desses episódios, passado na Páscoa, há uns anos, em que, no momento em que o padre entrou no quintal com a cruz, “a família estava toda pegada”.
Segundo os vizinhos daquela família, além de Maria da Conceição, uma outra irmã foi morar para a casa paterna há pouco tempo. Esta mulher, que apresenta extensas queimaduras no corpo, terá sido vítima de uma crime de violência doméstica que a deixou naquele estado.
“Não quero nada com essa gente. Uma vez olhei casualmente para um, ao passar em frente ao quintal e fui logo ameaçada”, afirmou uma moradora ao JN.
Apesar destes relatos, que traçam um perfil violento desta família, a irmã que conversou com o JN e que prefere não ser identificada, foi muito cordial e civilizada. Contudo, a irmã reconheceu que há veracidade naqueles relatos. “Não podemos escolher a família em que nascemos”, desabafou.
Especialistas apontam erro à Conservatória de Guimarães
O incesto entre pessoas adultas não é proibido em Portugal e, desde que as relações sejam consentidas, não implica qualquer responsabilidade penal. No entanto, o mesmo já não se passa relativamente ao casamento.
O artigo 1602.° do Código Civil, que define os “impedimentos dirimentes relativos”, estipula que um casamento é nulo se os nubentes tiveram “parentesco na linha reta”, como acontece entre um pai e uma filha.
O mesmo sucede se houver uma “relação anterior de responsabilidades parentais”; “parentesco no segundo grau da linha colateral”; ou “condenação anterior de um dos nubentes, como autor ou cúmplice, por homicídio doloso, ainda que não consumado, contra o cônjuge do outro”.
Ao JN, a advogada Conceição Ruão confirma que “o incesto em Portugal não é crime, porque se espera que a censura social atue” e seja suficiente para evitar relações deste tipo. No caso do casamento entre o pai e a filha de Celorico de Basto, Conceição Ruão não tem dúvidas de que “houve um erro da conservatória, que não identificou convenientemente os nubentes”.
E neste tipo de situações, esclarece, as consequências são óbvias: a nulidade do casamento. “Pode ser a própria conservadora ou o Ministério Público (MP) a pedir a anulação do casamento”, alega.
Conceição Ruão entende, ainda, que pai e filha, que querem ser marido e mulher, assim como as testemunhas do casamento – e foram três – podem vir a responder por crime de falsas declarações. Isto porque ninguém revelou à Conservatória do Registo Civil de Guimarães que os noivos eram familiares diretos.
Queixa de familiares
A mesma posição é expressa pelo também especialista em direito de família Nuno Cardoso-Ribeiro. “Em Portugal e na maioria dos países ocidentais, não é legal o casamento entre pai e filha. É vedado pelo Código Civil”, diz.
Para o presidente da Associação dos Advogados de Família e das Crianças, “o casamento é anulável e não terá qualquer efeito”, mas para que tal suceda “terá de haver uma ação instaurada pelo MP, parentes em linha reta ou herdeiros” dos noivos. “A decisão será decretada pelo tribunal”, explica.
Embora não conheça os contornos do caso de Celorico de Basto, Nuno Cardoso-Ribeiro está igualmente convencido de que “houve um lapso” da conservatória que permitiu o casamento entre um pai e uma filha.