Fernando Pinto Monteiro tinha 80 anos e foi procurador-geral da República entre 2006 e 2012. Mandato ficou marcado por polémicas ligadas a Sócrates.
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Morreu esta quarta-feira aos 80 anos, de cancro do pulmão, Fernando Pinto Monteiro, procurador-geral da República (PGR) de 2006 a 2012. Personalidade polémica, chocou de frente com o Sindicato dos Magistrados do Ministério Público e nunca desistiu de lutar contra a acusação de que era próximo do ex-primeiro-ministro José Sócrates (2005-11), que o escolheu para o cargo.
No seu mandato, a sombra do Ministério Público pairou sobre o socialista em dois processos - Face Oculta e Freeport -, mas foi em 2014, já após ter deixado de ser PGR, que Pinto Monteiro foi surpreendido a almoçar com José Sócrates, dias antes de este ser detido na Operação Marquês, o único caso em que tal aconteceu.
"Aconteça o que acontecer, nunca o engenheiro José Sócrates me perguntou nada sobre a justiça", assegurou então. Quatro anos antes, tentara reforçar, sem sucesso, os poderes do PGR, que disse serem os mesmos da "rainha de Inglaterra".
A referência não poderia ser mais distinta da imagem que o seu antecessor no cargo, José Souto Moura, guarda de Pinto Monteiro da primeira vez que se encontraram. "Fiquei com a imagem de que era um beirão de velha e boa cêpa, que apreciava a vida", recordou ontem, à RTP, o magistrado, para quem a morte de Pinto Monteiro é uma "perda para a magistratura portuguesa".
De procurador a juiz
Nascido no lugar de Porto de Ovelha, no concelho de Almeida, a 5 de abril de 1942, Pinto Monteiro licenciou-se em Direito na Universidade de Coimbra. Em 1966, começou a carreira como delegado do Ministério Público em Idanha-a-Nova.
Sete anos mais tarde, passou a exercer como juiz de direito, tendo passado por comarcas na Madeira, no Alentejo e na Grande Lisboa. Em 1990, subiu ao Tribunal da Relação de Lisboa.
Em 1998, subiu mais um degrau na carreira e tornou-se juiz conselheiro no Supremo Tribunal de Justiça. Também foi docente universitário, secretário-geral da Associação Sindical dos Juízes Portugueses, e membro do Conselho Pedagógico do Centro de Estudos Judiciários.
Em 2006, tomou posse como PGR, proposto por José Sócrates e confirmado por Aníbal Cavaco Silva, à data presidente da República. Os anos seguintes foram conturbados (ler ao lado).
A par das polémicas, o seu mandato ficou ainda marcado pela persistência na investigação do "Apito Dourado", pelos resultados obtidos com a constituição de equipas mistas, nomeadamente no processo "Noite Branca", e pelo incentivo no combate à violência contra mulheres, idosos e crianças.
"É um cargo importante, de exercício muito difícil, e o Dr. Pinto Monteiro exerceu-o numa fase complexa da vida nacional", sublinhou, ontem, o atual chefe de Estado, Marcelo Rebelo de Sousa, transmitindo as condolências à família.
A Procuradoria-Geral da República e a ministra da Justiça, Catarina Sarmento e Castro, manifestaram igualmente o seu "pesar".
"Era um homem de grandes qualidades humanas e pessoais, de enorme cordialidade e simpatia. O que, no momento da nossa morte, é a única coisa que releva", comentou o antigo procurador-geral Distrital de Coimbra, Euclides Dâmaso.
Um almoço "inocente" que se transformou numa "coincidência complicada" tornou-se o símbolo de um mandato em que raramente conseguiu fugir à perceção de que quis proteger José Sócrates da Justiça
Freeport - As perguntas por fazer a Sócrates
Em 2010, seis anos após ter começado a investigar o licenciamento do centro comercial Freeport, em Alcochete, o Ministério Público incluiu no despacho de encerramento de inquérito 27 perguntas que, alegadamente por falta de tempo, não podiam ter feito a José Sócrates, ministro do Ambiente à data dos factos. Um mês e meio antes, Pinto Monteiro apressara o fim do inquérito. O então presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, João Palma, chegou mesmo a acusar o procurador-geral de não ter deixado investigar até ao fim. Em 2014, Pinto Monteiro consideraria o caso Freeport um "processo inventado".
Face oculta - Cortou à tesoura excertos de escuta
Em 2009, Pinto Monteiro rejeitara abrir um procedimento criminal contra José Sócrates após este ter sido escutado, no processo Face Oculta, a falar de um alegado plano de controlo da TVI. Já em 2011, seria o próprio procurador-geral da República a cortar à tesoura, por ordem do então líder do Supremo Tribunal de Justiça, Noronha Nascimento, excertos das interceções telefónicas dos despachos do processo, relacionado com um esquema de fuga ao fisco sem relação com o antigo governante. "Não havia crime", insistiria em 2014.
Operação Marquês - Almoço dois dias antes da detenção
Em novembro de 2014, três dias antes de José Sócrates ser detido na Operação Marquês - o único em que corre o risco de ser mesmo julgado -, Pinto Monteiro almoçou com antigo primeiro-ministro. Terá sido a primeira vez que tal aconteceu. O convite partiu do socialista". "Eu almoço com quem quero. Simpatizo com José Sócrates, como com outras pessoas. Não nego as simpatias que tenho", disse na altura o juiz conselheiro, admitindo que o almoço "inocente" poderia tornar-se uma "coincidência complicada". Sobre justiça, assegurou então, nada lhe foi perguntado.
Procuradoria - Mandato começou com o pé esquerdo
Em outubro de 2006, pouco tempo depois de tomar posse, Pinto Monteiro viu a sua escolha para vice-procurador-geral ser chumbada por apenas um voto no Conselho Superior do Ministério Público. O eleito era Mário Gomes Dias, que, nos 23 anos anteriores, tinha sido auditor do Ministério da Administração Interna. Mas o procurador-geral da República não desistiu e insistiu na eleição, num segundo escrutínio, do escolhido, o que acabou mesmo por acontecer.
Ministério Público - Guerra aberta com o sindicato
Durante os seis anos de mandato, Pinto Monteiro enfrentou ainda a forte oposição do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público. Um dos antigos líderes da associação, João Palma, chegou mesmo a afirmar, em 2018, que o mandato Sócrates-Pinto Monteiro foi o "período mais negro da história do Ministério Público democrático". Ontem, ao JN, frisou que "os adversários se combatem em vida" e apresentou condolências à família de Pinto Monteiro.