<p>Manuel Rodrigues andava, ontem, bem cedo pela manhã, numa verdadeira lufa-lufa. Ao corropio da clientela habitual da pastelaria "Belém", situada numa das artérias mais portuguesas de Joanesburgo (Rua Augusta), acrescia outra preocupação: certificar-se de que as duas dúzias de pastéis de bacalhau que estava a confeccionar para os jogadores da selecção portuguesa estavam no ponto. Afinal, não é todos os dias que se pode marcar golos no estômago de Cristiano Ronaldo e Companhia.</p>
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Os pastéis que tão habilmente um dos seus 30 empregados ("são na maioria negros, não tenho dinheiro para pagar aos brancos") preparava vão seguir congelados para Magaliesburg, local de estágio da equipa das quinas. "Depois, os cozinheiros da selecção é que sabem o que fazer com eles". E haverá alguma poção mágica nesses salgadinhos? "Não, nada disso. O costume. Mais bacalhau do que batata", graceja. "Mas eles devem gostar dos meus pastéis, uma vez que esta já é a segunda vez que os forneço", contemporiza Manuel Rodrigues, 58 anos (43 de África do Sul), nascido em Joane, Famalicão.
A "Pastelaria Belém" instalou-se em território africano no princípio da década de 70 do século passado. O negócio era propriedade de um lisboeta, que há dez anos se cansou daquela vida e decidiu leiloá-lo. Manuel foi o licitador mais alto.
Sobretudo nas décadas de 80 e 90, o espaço era conhecido como a fina-flor dos casamentos em Joanesburgo, graças à imensidão do restaurante situado no primeiro-andar do edifício, hoje uma imagem pálida do passado. Manuel Rodrigues partilha a aventura sul-africana com o irmão, David, que regressou há pouco tempo de Portugal, após uma investida pouco frutuosa na terra natal, também no Minho, onde "foi tomar conta de um café".
Manuel, esse, há muito que se rendeu às evidências. E, apesar das dificuldades, África do Sul é o seu país. "Já tivemos melhores dias, vivemos muito de altos e baixos. A vida aqui não é tão fácil como a malta pensa", sublinha, puxando da máquina de calcular: há seis meses, facturava 40 mil rands (quatro mil euros) por dia, agora a cifra encolheu para metade.
"Little Portugal"
A apenas uns quarteirões de distância encontrámos a peixaria "Rio Douro", outra das capelinhas do comércio de Joanesburgo que a comunidade portuguesa frequenta religiosamente. É conhecida mais pelo peixe, mas vende de tudo. Mesmo de tudo.
E foi deste estabelecimento, gerido por emigrantes madeirenses, que saiu uma longa lista de produtos portugueses destinados à equipa nacional. Manuel Carlos, 26 anos, indisfarçável musiquinha madeirense no sotaque, vai ao balcão resgatar a prova da encomenda feita com um mês de antecedência e começa a desfiar o carrinho de compras da federação: "Ora bem, deixe cá ver... Bacalhau, chouriço, azeite, cabrito, presunto, azeitonas, sardinhas em lata, queijo, marmelada, morcela, vinagre". E, quando a roda dos alimentos já parecia fechada, lembrou-se: "Ah! E tremoços". Riu-se. Talvez por saber que Eusébio da Silva Ferreira também seguiu viagem para a África do Sul.
"Já estamos neste negócio há 40 anos e os produtos nacionais sempre tiveram muita procura", sublinha, garantindo ser "um orgulho muito grande ter a selecção a consumir" os seus produtos. Pedidos especiais? "Não, nenhum". E qual deve, então, ser a dieta mediterrânica dos "navegadores"? "De todas as coisas que levaram, acho que têm que comer cabrito para correrem mais. Mas não convém que comam muito", sorri.
A peixaria "Rio Douro" foi comprada pelo pai de Carlos em 1971, já com essa designação. Desconhecem a origem do nome de baptismo do estabelecimento, mas rezam as lendas que terá sido pertença de um homem do Norte. A loja, que equivale, em termos de espaço, a uma média superfície em Portugal, conserva o imaginário lusitano quase intacto. Ao inescapável bacalhau e azeitonas, juntam-se as bandeiras de Portugal e os jornais da comunidade. Ao fundo, uma coluna decorada com CD de música pimba e revistas do social reúne uma tripla de curiosos. No "mundial" do cor-de-rosa, Simara e Alexandra Lencastre disputavam as parangonas.