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Não é necessário ser português para sentir deslumbramento perante o génio brasileiro. A criatividade brasileira - aquela particular combinação de raças, de línguas, de credos, de sons, e a energia extraordinária que essa mistura engendra - expande os limites do nosso universo, mostra que as potencialidades humanas são mais amplas. O fascínio e a sedução do Brasil tocam muitas pessoas em todo o Mundo: não é preciso ser português para sentir isso. Mas entre nós a afinidade é mais próxima, a relação é mais estreita. Falamos a mesma língua e, no entanto, o jogo das diferenças dá-nos de imediato uma noção expandida das possibilidades do português. Conhecer o Brasil é ficar a saber que, com os mesmos materiais, se podem fazer muito mais coisas. As nossas histórias estão tão entrecruzadas que o antigo presidente da República Mário Soares dizia que todos os portugueses deveriam poder conhecer o Brasil, porque isso os levaria a conhecer melhor e a gostar mais de Portugal.
Mas é necessário saber estar à altura desta espécie de orgulho. A singularidade do Brasil é também o resultado da violência da chegada dos europeus à América do Sul, do extermínio dos povos indígenas e do tráfico de seres humanos, arrancados da costa ocidental de África e vendidos como coisas. Processos históricos de alcance tão largo deixam feridas que atravessam os séculos e que estão até hoje vivas na sociedade brasileira. Temos, sobretudo, de estar à altura do nosso vínculo pela maneira como nos relacionamos hoje com os brasileiros que escolheram Portugal para viver. Nenhum outro povo tem uma presença tão forte no nosso país, e nunca antes tantos brasileiros tinham estado aqui. A nossa ligação, que é histórica, está hoje mais viva.
Quanto mais não seja pela sua dimensão continental, nenhum país como o Brasil terá deixado uma marca tão forte na nossa imaginação. Ao mesmo tempo, subsiste entre os nossos povos um vasto desconhecimento recíproco, um lastro de ideias feitas e de fantasmas de outras épocas. Por demasiado tempo, os portugueses foram representados na imaginação brasileira como um povo parado no tempo, fora da história, enquistado em rituais conservadores e talvez sombrios, enquanto o Brasil era quase sempre visto aqui pelo prisma estereotipado do sol e da praia, ignorando o que um país com a ambição do Brasil criou e cria também na literatura, na arquitetura, nas artes plásticas, na música - e, sobretudo, na mistura entre o "alto" e o "baixo", o popular e o erudito. Por vezes por uma noção completamente equivocada de que seríamos os detentores da versão "correta" da língua, privámo-nos de conhecer a obra de clássicos da literatura em língua portuguesa como Machado de Assis, Guimarães Rosa, Clarice Lispector ou Drummond de Andrade com a atenção que dedicamos a Camões, Eça de Queirós, Pessoa ou Sophia - todos eles, exatamente ao mesmo nível, gigantes da língua.
Sem contar com os que têm dupla nacionalidade, há hoje um quarto de milhão de brasileiros a viver em Portugal. Trata-se de um conjunto de pessoas não só maior, mas mais diverso, que nos dá uma imagem mais plural daquilo que é o Brasil. O segundo centenário da independência é, por isso, uma oportunidade de ouro para que os nossos dois países possam descobrir-se mais uma vez, um ao outro, não como imagens congeladas no passado, mas como culturas plurais, como entidades vivas.