Médico de 37 anos relata o diário das primeiras semanas da guerra, quando Bucha foi tomada pelas tropas russas.
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A história da inabalável resistência de Anton Dovgopol nos primeiros 15 dias de guerra deveria ficar para sempre eternizada. Há quem já tenha sugerido que escrevesse um livro, mas o diretor do Hospital Central de Irpin rejeita. "É demasiado difícil recordar". Durante duas infindáveis semanas nas trevas de Bucha, esteve no olho do furacão, salvou a vida a militares russos, assistiu ao desespero da morte e à esperança da vida, recusou render-se e comandou uma arriscada evacuação da cidade.
No centro de saúde de Irpin, onde as cicatrizes de um bombardeamento são ainda visíveis no edifício, o médico abre o diário na página do dia 24 de fevereiro de 2022. Com um discurso categórico e extremamente lúcido, Anton Dovgopol começa precisamente por recordar o início do inferno. A guerra tinha estourado há menos de 24 horas quando as primeiras vítimas chegaram ao hospital com queimaduras e ferimentos de explosivos, após o ataque ao aeroporto de Hostomel.
A consciência de que algo dantesco estaria a acontecer fê-lo agir de imediato. A prioridade do diretor foi assegurar que os três ramos do hospital - o centro de saúde em Irpin, a maternidade em Vorzel e a urgência em Bucha - estavam todos na mesma linha, prontos para realizar cirurgias, fazer partos e operar durante 24 horas por dia. Com o cerco das forças russas a apertar, o centro de saúde e a maternidade foram evacuados, mas em Bucha o cenário foi diferente. "Ficámos em ocupação entre 4 e 12 de março. Foi um período muito difícil da nossa vida porque estávamos sem eletricidade, sem água, sem esgotos, sem a possibilidade de entregar medicamentos ou comida. Estávamos completamente sob ocupação, sem possibilidade de comunicação. Todas as pontes de contacto foram destruídas, a logística foi toda perturbada", relata.
Ainda assim, a equipa do hospital nunca parou de trabalhar. Além de salvar vidas no bloco operatório, arriscou-se em missões humanitárias para entregar comida e medicamentos sob o olhar das metralhadoras russas e até dos militares de Moscovo tratou. Uma difícil gestão entre a missão e a emoção, a razão e o ódio. "Claro que quando olhámos para os soldados russos, o primeiro desejo que tínhamos era de os matar. Mas, ao mesmo tempo, compreendemos que somos médicos e existem leis da guerra. Não as podíamos violar. Com um coração magoado, com um grito na alma, os médicos trataram-nos, mas não o queriam fazer". Como gestor do hospital, Anton Dovgopol assegurou a implementação da Convenção de Genebra, mesmo que depois se viesse a arrepender. "Quando percebemos que eles matavam as crianças e mulheres grávidas, nunca ninguém os teria tratado. Teriam sufocado à porta. Mas na altura foi assim".
Com o rasto de destruição a alastrar-se em Bucha, o hospital tornou-se num refúgio para feridos e desamparados, crianças e grávidas. Dia 4 de março, eram 150 funcionários e 280 pacientes. As tropas russas queriam ocupar o hospital, mas a equipa de Dovgopol não arredou pé. Mesmo com metralhadoras apontadas à cabeça. "Se quiserem disparar contra nós, façam-no. Não vamos a lado nenhum". Com a ameaça a fervilhar tão perto, a ocupação do hospital estaria por dias e, por isso, a prioridade foi evacuar os soldados ucranianos feridos para um hospital militar nas proximidades. "Pela forma como os russos se comportavam com os civis, se entrassem no hospital não fariam [dos soldados ucranianos] prisioneiros, seria um tiroteio direto", acredita Dovgopol. Não tardou que o hospital fosse visitado pelas tropas de Putin. "Ficámos isolados da informação e da comunicação. Não sabíamos o que estava a ser feito em toda a Ucrânia. Tínhamos um rádio que funcionava periodicamente e ouvimo-lo durante dias. Não havia Internet, não havia eletricidade, nada".
Corpos no pátio
De olhar fixo e sem uma única hesitação, Dovgopol continua o relato. Desacelera. Ainda é demasiado fresca a memória insuportável do que viveu e do que assistiu. "Testemunhei corpos deitados no pátio a serem comidos por animais. Como os cães comem as orelhas das pessoas. Tudo isto aconteceu diante dos meus olhos, estes horrores".
Com a evacuação a acontecer a conta-gotas, a gota de água caiu a 11 de março. De acordo com o médico, os soldados russos tomaram o hospital de assalto, fizeram de todos reféns e exigiram que Anton Dovgopol fosse o "presidente da Câmara" do território ocupado". Uma vez mais, o médico e a sua equipa tiveram que agir. Durante a noite, recolheram o equipamento valioso, desmantelaram os quadros de controlo para que ficassem inutilizáveis e começaram a preparar a saída do edifício, em coordenação com os ministros da Saúde e da Reintegração.
A 12 de março, com a janela da "liberdade" ali tão perto, Dovgopol recebe a informação que o corredor de evacuação tinha sido quebrado, bloqueado pelos russos. "Tinha que deixar o hospital por minha conta e risco, era impossível ficar. Quando começo a sair, apercebo-me que muitos carros me começam a seguir. Por se tratar de uma caravana de grande escala, até os russos pensavam que afinal éramos mesmo um comboio de evacuação oficial e começaram a bombardear-nos".
Com a guerra, o diretor do Hospital Central de Irpin foi obrigado a reinventar-se. A bravura valeu-lhe uma condecoração entregue pelo presidente, Volodymyr Zelensky. Depois da ocupação, a equipa médica voltou ao hospital. "Em 14 dias, conseguimos retomar totalmente o trabalho. A 14 de abril realizámos a primeira operação planeada. A história é esta".