Falência da FTX deixa dois milhões de lesados. "Um dos golpes mais elaborados da história"
Sam Bankman-Fried valia dezenas de milhares de milhões de euros, pelo menos no papel. O "génio descontraído" que atraiu celebridades do desporto e da política para conferências em "resorts "de luxo nas Bahamas, ilha das Caraíbas onde estava a sede da FTX, plataforma de criptomoeda que faliu a 11 de novembro. Cerca de dois milhões de investidores, incluindo portugueses, foram apanhados numa das "maiores fraudes da história dos EUA".
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A FTX, uma corretora de criptomoeda fundada em 2019, declarou falência em novembro, após três anos de crescimento acelerado. A empresa, fundada por Sam Bankman-Fried e Zixiao Wang, podia ser vista na frente dos Mercedes que competem na Fórmula 1, deu o nome ao pavilhão da equipa da NBA Miami Heat e patrocinou uma equipa de desportos virtuais (eSports). A companhia estabeleceu a credibilidade atraindo investidores famosos, como o "mal-disposto" da versão norte-americana do programa televisivo "Shark Tank", David O' Leary, já ouvido em comissão de inquérito no Senado dos EUA, investiu em empresas em dificuldades com o "inverno cripto" e apoiou causas sociais.
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A supermodelo Giselle Bundchen é uma das muitas figuras que contribuíram para credibilizar a FTX, enquanto conselheira ambiental e social da empresa, a par do ex-marido, a estrela do futebol americano Tom Brady, e outros desportistas de elite como o basquetebolista Stephen Curry e a tenista Naomi Osaka. Cabelo volumoso e com fama de génio descontraído, o diretor-geral da FTX, Sam Bankman-Fried, sentava-se à mesa, de t-shirt e calções, com "celebridades" da política mundial como o ex-presidente dos EUA Bill Clinton e o antigo primeiro-ministro britânico Tony Blair.
"Foi uma tática de gorila marketing, para chegar a mais pessoas em pouco tempo", comentou Pedro Aguiar, um dos portugueses prejudicados pela falência da FTX. "Houve alguns alarmes, mas como eram muito poderosos, a empresa era uma espécie de Deus", acrescentou o investidor, que é um dos cofundadores da OffChain Lisbon, associação que está a tentar juntar os cidadãos de Portugal que perderam dinheiro com o fim daquela corretora.
A plataforma FTX, que em tempos foi avaliada em 32 mil milhões de dólares (30 mil milhões de euros), pode ter mais de um milhão de credores em todo o mundo, incluindo em Portugal. Até ao momento, a empresa admitiu que deve mais de três mil milhões de dólares (2,8 mil milhões de euros) aos 50 maiores credores. Pedro Aguiar diz que a OffChain Lisbon "não tem uma ideia" de quantos portugueses foram prejudicados nem dos montantes em causa, porque não pergunta. Estima que haja alguns investidores que tinham aplicado cerca de 50 mil euros em criptomoeda, mas a maioria tem aplicações na ordem dos cinco mil euros.
A bitcoin, conceito desenvolvido em 2009 por uma pessoa ou grupo sob o pseudónimo Satoshi Nakamoto, é uma forma de dinheiro digital que funciona distribuído por uma rede de computadores, protegida por técnicas de criptografia e sem regulação de qualquer estado ou instituição. "Sam passava por alguém que dava confiança porque dizia que ia procurar a regulação", recorda Pedro Aguiar. Bankman-Fried dizia que pretendia doar 99% da fortuna e era considerado por muitos em Washington e Wall Street como alguém que poderia ajudar a tornar a criptomoeda popular, em parte através do lóbi junto dos legisladores para trazer mais supervisão e confiança ao setor.
SBF, como era conhecido no mercado, financiou os dois principais partidos norte-americanos e foi o segundo maior doador da campanha dos democratas, com 40 milhões de euros, para as eleições intercalares de novembro, realizadas no dia 8. Três dias depois, a FTX declarou falência, quando parecia que nem o céu era o limite. "Basicamente, esconderam todas as pontas, todas as partes más", sublinha Pedro Aguiar. "Como eram muito fechados, não se sabia o que se passava. Faziam muitos investimentos, apoiavam muitas empresas. Isso deu credibilidade".
A explicação para a subida astronómica, segundo as autoridades financeiras e judiciais norte-americanas, é simples: "Sam Bankman-Fried construiu um castelo de cartas com base em fraude, enquanto dizia aos investidores que tinha um dos locais mais seguros para investimento em cripto", disse o presidente da Comissão de Valores Mobiliários dos Estados Unidos (SEC, na sigla em inglês), Gary Gensler, em comunicado.
De acordo com a SEC, Bankman-Fried é um empresário sem escrúpulos que se apresentou como um líder responsável da comunidade de criptoativos, elogiando a importância da regulação e o cuidado na gestão de dinheiro dos clientes, o que teria induzido milhões, no mundo inteiro, a acreditar que os ativos estavam seguros na FTX. "Mas desde o início, desviou indevidamente os ativos dos clientes para o fundo especulativo de cripto de propriedade privada, Alameda Research LLC ", e usou os recursos dos clientes para fazer investimentos de risco não revelados, luxuosas compras imobiliárias e grandes doações políticas", afirma o documento da SEC.
Um trabalho da CoinDesk encontrou paralelismo nos balanços da FTX, fundada em 2019, e do fundo Alameda Research, que nasceu em 2017. Ambas tinham o mesmo pai, SBF, e pareciam ligadas por um cordão umbilical. De acordo com a SEC, houve "tratamento especial não divulgado concedido à Alameda na plataforma FTX e risco não divulgado decorrente da exposição da FTX às participações significativas da Alameda de ativos afiliados à FTX." Na ação, a SEC sustenta que Bankman-Fried desviou milhares de milhões de dólares para impulsionar o crescimento de outras empresas do grupo.
A CFTC, que supervisiona a estrutura do mercado, concentra as acusações na mistura de fundos dos clientes da FTX e o fundo de coberura Alameda Research. "As acusações são abrangentes e a acusação é inequívoca - todas as agências afirmam que Sam Bankman-Fried conscientemente e com premeditação significativa cometeu fraude numa escala comparável apenas aos golpes mais elaborados da história. A FTX será lembrada como um grande escândalo corporativo", escreveu David Z. Morris, colunista chefe da página Insights do CoinDesk, o portal especializado em criptoativos que esteve na origem da denúncia do caso.
Em ambos os casos, a punição para SBF será principalmente financeira, na forma de multas pesadas, e a proibição de agir como agente financeiro em qualquer um dos ramos. Na vertente judicial, se for condenado, o ex-prodígio descontraído das "crypto"pode nunca mais ver a luz do dia em liberdade. Em pouco mais de um mês, Sam Bankman-Fried, de 30 anos, passou de multimilionário a arguido num processo de fraude e burla que o pode condenar à prisão o resto da vida. O "génio" descontraído das "crypto" foi preso na segunda-feira nas Bahamas e aguarda julgamento em prisão preventiva, sem direito a fiança.
A juíza Joyann Ferguson-Pratt disse, após uma audiência que durou várias horas, que o elevado risco de fuga justifica a recusa de libertação sob fiança, de acordo com o Nassau Guardian, e ordenou que fosse detido até 8 de fevereiro. As autoridades das Bahamas prenderam Sam Bankman-Fried, no seguimento de um mandado judicial emitido pelo Procurador do Distrito Sul de Nova Iorque, Damian Williams. SBF, como é conhecido no meio, foi a tribunal, na terça-feira, para primeira audiência, e ficou sob custódia judicial.
"Indiciá-lo tão cedo, quando não precisavam, diz-me que têm evidências incrivelmente poderosas", disse o ex-promotor federal Gene Rossi. Em entrevista à Bloomberg, acrescentou que os promotores provavelmente estavam "muito preocupados" com a possível fuga de Bankman-Fried para uma jurisdição onde não poderia ser extraditado. O Procurador-Geral das Bahamas, Ryan Pinder, disse na terça-feira que "no momento em que for feito um pedido formal de extradição, as Bahamas planeiam processá-lo rapidamente".
O procurador dos EUA, Damian Williams, considerou a FTX como "uma das maiores fraudes da história americana". Bankman-Fried é acusado de desviar ilegalmente o dinheiro dos clientes para cobrir despesas, dívidas e negociações arriscadas no fundo de cobertura Alameda Research, e para fazer luxuosas compras de imóveis e grandes doações políticas, destacam os procuradores numa acusação de 13 páginas citada pela agência Associated Press (AP).
"Sam fazia-se passar por uma pessoa que não tinha interesse pelo dinheiro, que ia doar tudo, Foi tudo um estratagema, uma vergonha", comentou o cofundador da OffChain Lisbon. "Agora viemos a saber que funcionava muito mal como uma empresa de cripto, que não tinham registos, não cuidavam dos fundos dos clientes", acrescentou Pedro Aguiar.
Os advogados da nova direção da FTX e o atual diretor-executivo, John Ray, afirmaram que "uma quantia substancial" dos ativos da empresa pode ter sido roubada ou estar desaparecida. A nova direção alegou também que a empresa tinha "ausência total de controlos corporativos" e falta de "informação financeira fiável".
"Estou profundamente desolado pelo que aconteceu", disse Sam Bankman-Fried, a 1 de dezembro, na primeira entrevista pública desde a falência da FTX, anunciada a 11 de novembro. "Fui diretor-geral da FTX, o que significa que aconteça o que acontecer, tinha a obrigação de preservar os interesses dos acionistas e clientes", admitiu, questionado numa conferência do jornal The New York Times. "Cometi muitos erros claramente, coisas que daria tudo para poder corrigir hoje", continuou o empresário de 30 anos.
Bankman-Fried chegou a ter uma fortuna avaliada em 26 mil milhões de dólares (cerca de 25 mil milhões de euros) - baseada na avaliação da FTX e da Alameda -, mas perdeu tudo com a falência da plataforma. Se for condenado, pode apanhar 20 anos de prisão por cada acusação de fraude eletrónica e lavagem de dinheiro e cinco anos para cada fraude no mercado de valores mobiliários e no financiamento de campanhas. Somadas, as penas podem chegar a 115 anos, de acordo com a Bloomberg.