Desvalorização da moeda chinesa gerou pessimismo quanto a acordo com os Estados Unidos da América.
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É mais um trambolhão estival com origem na China, economia das mais vedadas do mundo mas com impacto mundial cada vez maior. As bolsas, na Europa e nos EUA, lutavam ainda terça-feira para recuperar depois de, na segunda-feira, uma desvalorização do renminbi para lá dos sete yuans por dólar ter produzido o pior dia em Wall Street em oito meses. A marca, simbólica, foi lida como sinal de que não há fim à vista para as tensões comerciais entre Washington e Pequim, que se arrastam há mais de um ano. Com a moeda enfraquecida, os produtos chineses ficam competitivos e compensam a imposição de taxas que os EUA ameaçam aumentar.
As bolsas norte-americanas, que arrancaram a semana com perdas nos 3% nos principais índices, voltavam à tona à hora de fecho desta edição. Mas a Europa manteve-se ontem sem capacidade para regressar aos ganhos: o índice das 50 maiores cotadas terminou o dia a cair 0,58%.
A reação dos mercados teve na origem a taxa de câmbio da moeda chinesa - renminbi, na designação oficial - frente ao dólar. Na segunda-feira, o Banco Popular da China fixou pela primeira vez o ponto médio da conversão da moeda num valor que permitiu furar a marca de sete yuans, tida até há pouco tempo como barreira à desvalorização. A taxa de referência ficou em 6,9225 yuans, com o mecanismo de câmbio a partir uma variação de 2%, e a moeda terminou o dia cotada em 7,05 yuans.
O movimento foi lido pelos analistas e pelos mercados como resposta ao anúncio de imposição de mais tarifas adicionais a bens chineses pelo presidente norte-americano, após novo falhanço negocial no final do mês, e sinal de que não haverá paz comercial à vista. E teve como reação a catalogação da China como manipuladora cambial pelo Tesouro dos EUA. A acusação continua a ser rejeitada por Pequim.
Ainda assim, os termos são brandos e as consequências limitadas. A classificação faz apenas com que os EUA se devam agora concertar com o Fundo Monetário Internacional "para eliminar a vantagem competitiva injusta criada pelas ações mais recentes da China".
O Banco Popular da China respondeu que Washington fará melhor em "controlar o cavalo à beira do precipício". Ou seja, recuar na hostilidade numa economia global em abrandamento, provocado também pela incerteza prolongada sobre as condições da atividade comercial. O FMI estima que, só no curto-prazo, o efeito das tarifas sobre a confiança empresarial roube 0,3% ao produto global.
Apesar do crescendo de ameaças, o dia de ontem teve ofertas de paz a prazo. O banco central chinês fixou o renminbi acima da taxa de conversão de segunda-feira e avisou que irá vender dívida no mercado de Hong Kong para fortalecer a moeda. Já o presidente dos EUA fez saber através do conselheiro económico, Larry Kudlow, que vai manter-se a negociar com Pequim e que pode até ter uma postura flexível na imposição de novas tarifas.
Economia europeia sob pressão
Para quem espera o final do cenário de forte incerteza inaugurado em março de 2018, quando os EUA anunciaram as primeiras tarifas adicionais ao aço e alumínio, ainda não há boas notícias. Na Alemanha, país da Zona Euro até aqui mais penalizado pela guerra comercial entre EUA e China, há quem antecipe um percurso tortuoso para durar até perto de novembro de 2020, data das presidenciais norte-americanas.
Economista do banco de investimento alemão Berenberg, Florian Hensen acredita que "EUA e China irão eventualmente chegar a algum tipo de acordo comercial que amenize as tensões sobre tarifas. Ao fim ao cabo, Trump quer ser reeleito em 2020 e é um reconhecido negociador. Mas o risco de que EUA e China falhem em chegar a um acordo parcial, ou que demore até 2020 ou mesmo mais tarde para conseguir um avanço, adivinha-se maior do que antes".
Neste ano, a economia alemã não deverá crescer além dos 0,5%, segundo a Comissão Europeia, que também reviu em baixa o crescimento da Zona Euro, para 1,4%. Em Portugal, "já se está a assistir a algumas pressões negativas na balança comercial", aponta o economista António Mendonça, professor no ISEG. "Está a haver uma inflexão". O Banco de Portugal espera para este ano uma balança comercial em défice.
"Portugal é um país de reduzida dimensão, muito aberto ao exterior. Tudo aquilo que se passar na economia internacional, particularmente na economia europeia, imediatamente tem uma repercussão aqui. É inevitável", nota António Mendonça.
Portugal sofre efeitos
Ainda que não sinta os efeitos diretos de tarifas aumentadas de parceiros comerciais, o país recebe os efeitos negativos da cadeia de transmissão comercial europeia e de uma retração da procura e do investimento, habitual nos cenários de incerteza. Para o economista português o cenário é agravado pela falta de recuperação dos rendimentos da classe média e por uma fraca reação europeia ao contexto internacional. "Faz falta na Europa uma política macroeconómica integrada com características expansionistas, que não está a haver".
Os efeitos da guerra comercial China-EUA pesam já sobre a Europa há 18 meses, lembra Florian Hense. E, ainda que os EUA se tenham abstido até aqui de acionar tarifas sobre os automóveis europeus e o bloco tenha beneficiado de garantias de custos mais baixos à exportação por parte da China neste período, os efeitos positivos foram "ténues". A possibilidade de Trump retomar a ameaça de sobretaxar carros e componentes da UE ainda se mantém, trazendo mais ventos contrários.
Soma-se a possibilidade de estar muito mais em jogo do que uma vitória eleitoral ou uma disputa comercial. Para Florian Hense, "as tensões China-EUA estão a metamorfosear-se cada vez mais de uma guerra comercial e cambial para uma luta pela hegemonia no século XXI". Já para António Mendonça, está em causa um novo paradigma de relações económicas indefinido onde ainda ninguém sabe onde pôr o pé. E onde a Europa continua a aparecer "muito perdida".
PERGUNTAS E RESPOSTAS
O que argumentam os EUA para a sobretaxa na compra de bens chineses?
O principal motivo alegado é o das alegadas transferências forçadas de tecnologia de empresas americanas com operações na China. Mas há vários anos que os EUA acusam Pequim de manipular a moeda.
A China desvaloriza a moeda para melhorar as exportações?
Até aqui, o Fundo Monetário Internacional tem concluído que não. Mesmo os EUA têm-se abstido desta acusação formal. Mas, na segunda-feira, o Tesouro norte-americano deu o passo: pela primeira vez acusou formalmente a China. O caso deve desembocar em negociações bilaterais ou no FMI.
Como funciona o câmbio do renminbi?
A taxa de câmbio no mercado doméstico chinês é definida diariamente pelo banco central, permitindo uma variação máxima de 2% para cada lado. Tem por base a procura e oferta de moeda no mercado externo, mas também factores "contracíclicos" que podem contrariar o mercado.
A desvalorização é vantajosa para a China?
Sim e não. Por um lado, baixa os custos de comprar à China, tornando as exportações mais competitivas e mitigando o efeito de tarifas adicionais. Por outro, destabiliza a economia ao potenciar a fuga de capitais para o dólar e outros ativos mais seguros. Também limita o investimento e atrai especulação.