O rosto da extrema polarização do Brasil. O país das oscilações políticas e constitucionais que tramaram e também reabilitaram o líder do Partido dos Trabalhadores.
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Onze anos depois de ter deixado o poder com uma taxa de aprovação de 87%, em pleno "boom" económico e com os melhores índices de desenvolvimento humano registados no país em várias décadas, o decano da Esquerda brasileira (77 anos a 27 de outubro) volta à ribalta política e comparece à corrida por um terceiro mandato, para "reconstruir o Brasil" e "preservar a democracia" da reeleição de Jair Bolsonaro.
Se vencer as eleições, como apontam as sondagens, seja já no domingo que vem ou à segunda volta (dia 30), Lula da Silva retomará o Palácio do Planalto como símbolo de uma certa desforra, política, social e até pessoal, contra o que advogados e apoiantes do ex-metalúrgico qualificaram como jurisprudência de aplicação conspirativa. E também contra a suposta parcialidade do juiz, Sérgio Moro, que o condenou por corrupção e o impediu de concorrer às eleições de 2018, sem que o processo tivesse transitado em julgado, o que abriu caminho à consagração de Jair Bolsonaro.
"Corrupção sistémica"
Recapitulação: em julho de 2017, em primeira instância, num tribunal de Curitiba, o então juiz Sérgio Moro (depois nomeado ministro da Justiça e da Segurança na legislatura de Bolsonaro) condenou Lula por crimes de corrupção passiva e de branqueamento de capitais, com base na compra suspeita de um apartamento na cidade costeira de Guarujá (Santos, S. Paulo). A acusação sustentava que o 35.º presidente do Brasil (mandatos: 2003-2007 e 2007-2011) estava envolvido em "contexto de corrupção sistémica" pela Petrobras e subornado com a propriedade do "flat". Em janeiro de 2018, Lula foi condenado em segunda instância (decisão unânime de três juízes de um tribunal de Porto Alegre). Após esta condenação, os advogados de Lula interpuseram recursos, para evitar a prisão.
No ano das eleições de 2018, a 4 de abril, o Supremo Tribunal Federal (STF) rejeitou o pedido de habeas corpus preventivo para que o ex-presidente se mantivesse em liberdade, o que produziu a inelegibilidade de Lula para as eleições, por falta de "Ficha Limpa", e enterrou todas as aspirações políticas do ex-sindicalista, quando as sondagens da Datafolha (instituto de pesquisa da Folha de S. Paulo) indicavam que o líder do PT detinha mais do dobro das intenções de voto no rival (39% contra 19%).
O processo, designado "Lava Jato", comprovou a crescente judicialização da política brasileira e também expôs a politização da justiça, denunciada pelo PT. E foram estes poderes que constituíram o fundamento de diferentes decisões do STF. O ovo da controvérsia remontou à chamada Constituição Cidadã, de 1988, que enuncia a presunção de inocência até à condenação definitiva, transitada em julgado, sem apelo possível. Acontece que, entre 2009 e 2019, os 11 juízes do STF nunca se entenderam sobre esta disposição.
Constituição Cidadã
Foi preciso chegar a 7 de novembro de 2019 - Bolsonaro estava instalado no poder havia já mais de um ano - para que o STF tivesse produzido nova interpretação da Constituição Cidadã, em resposta aos recursos apresentados pelo Partido Nacional Ecológico, pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil e pelo Partido Comunista do Brasil. Numa votação tangencial (6-5), os juízes do STF decidiram então que não era possível executar a sanção penal após a condenação em segunda instância. O líder do PT foi libertado da cadeia da Polícia Federal de Curitiba, ao cabo de um ano e sete meses de complexas engrenagens judiciais.
Lula ainda teve de esperar por nova decisão do STF, em março de 2021, para recuperar os direitos políticos que lhe permitiram recandidatar-se à presidência do Brasil. As condenações em segunda instância, que conduziram à detenção, perderam efeito, porque, segundo o STF, os processos penais em causa (envolvendo o tal apartamento em Guarujá, uma fazenda em Atubaia e ofertas ao Instituto Lula) não teriam qualquer correlação com o desvio de fundos da Petrobras. E o juiz Edson Fachin, responsável pela sentença preliminar, confirmada pelo plenário do STF, considerou que a competência para julgar Lula era da justiça federal, em Brasília, e não de tribunais de Curitiba ou de Porto Alegre.
O que foi o "Lava Jato"?
A investigação "Lava Jato" foi lançada pela Polícia Federal Brasileira em 2014. Incidiu sobre alegados esquemas de corrupção entre a Petrobras - empresa controlada pelo Estado brasileiro, que opera no segmento da energia (exploração, produção, refinação, comercialização e transporte de petróleo, gás natural e derivados) -, empresários e políticos de vários partidos.
A operação conduziu à detenção de empresários da elite económica e de políticos importantes, tais como, além do próprio Lula, um ex-ministro de Estado, José Dirceu, um ex-governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, ou o antigo deputado federal Eduardo Cunha.
Uma das personalidades mais marcantes do "Lava Jato" foi Sérgio Moro, que se demitiu da magistratura para ser ministro da Justiça. Entrou para o Governo a 1 de janeiro de 2019 e saiu 16 meses depois, a 24 de abril de 2020, em protesto contra a exoneração do diretor-geral da Polícia Federal, decretada por Bolsonaro.
Em julho de 2020, Bolsonaro disse que já não havia corrupção no Governo para ser investigada. Em fevereiro de 2021, a equipa do "Lava Jato" foi dissolvida pelo então procurador-geral da República, Augusto Aras, nomeado pelo presidente.