Tiros, denúncias e medo. O bairro argentino da droga adulterada era uma bomba-relógio
Muitos escondem-se em casa, poucos falam, todos choram. Viver na Puerta 8, bairro que se converteu no epicentro da cocaína envenenada, é uma espera constante pela desgraça. Os pais veem os filhos recrutados para o negócio e não podem fazer nada. Há vidas em jogo.
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Todos os dias, por volta das 19 horas, o barulho ensurdecedor das motas é o primeiro alerta. As assobiadelas contínuas o segundo. Estão a chegar à Puerta 8, bairro de Buenos Aires que se converteu no epicentro da cocaína envenenada, os "soldadinhos" da droga. Compram produto para vender e recrutam miúdos, a partir dos dez anos, para engordar o negócio.
Os pais, desesperados, choram em silêncio. "Derramamos tantas lágrimas. Não quereremos que os nossos filhos cresçam no meio da droga", desabafa uma mãe ao jornal argentino Clarín. Mas prefere manter o anonimato: por estes dias, mais forte do que o tráfico é o medo. Naqueles quatro quarteirões, onde vivem cerca de 200 famílias, a droga é mais barata, fica a metade do preço de mercado. O cliente recebe, assim, doses bem "cortadas", misturadas, por exemplo, com pós inócuos como o amido.
Mas esta semana foi diferente. Uma substância ainda não identificada transformou os pacotes de cocaína em veneno fatal. Mais de 80 pessoas foram hospitalizadas, com ataques cardíacos e convulsões, e vinte morreram. Número que as autoridades acreditam que irá aumentar.
É pela rua Catamarca que se acede ao corredor que vai dar ao bunker da Puerta 8. Lá já não há embrulhos de cocaína nem revendedores responsáveis por armazená-la. No interior da sala abandonada - impregnada de humidade - há apenas uma mesa enferrujada, um berço cor-de-rosa, um inseticida em spray, caixas vazias e roupas espalhadas pelo chão.
Os moradores não saem de casa, por medo. O epicentro da droga é uma encruzilhada de ruas cheias de lama, construções baixas, de tijolo e cimento, algumas pintadas de cores vivas, com tetos de chapa metálica, fios e lixo por todo o lado.
Não há iluminação pública no bairro, que abastece de droga as cidades de Loma Hermosa, Villa Bosh e Caseros. Os "narcos" chegaram em 2017 e já tinha havido, há mês e meio, uma operação policial na localidade, em nada comparada com a da passada quarta-feira.
Apesar das 23 denúncias de tráfico de droga feitas por quem lá vive, o negócio soma e segue. "Vivíamos aqui tão tranquilos. Isto revolucionou o bairro. Hoje estamos cercados, vês cada cara que até te dá medo", conta Francisco, ao Clarín.
Juan não tem dúvidas de que o melhor é fazer vista grossa. "Sabe-se que há venda de droga, mas o melhor é olhar para o lado. Há traficantes por todo o lado e tiroteios à noite. Não consumo nem me meto com ninguém para não acabar mal. Acredito em Deus e na sua justiça", garante.