Famílias que se tinham autonomizado voltam a recorrer às instituições, que estão com dificuldade em dar resposta.
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Muitas famílias portuguesas estão a ter dificuldades em fazer face à subida geral dos preços e voltaram a recorrer à ajuda de instituições para ter alimentos, roupa ou produtos de higiene depois de, nos últimos anos, terem conseguido ganhar alguma autonomia. A inflação carrega nos preços e tem também impacto nos donativos: há pessoas a doar menos porque os produtos estão mais caros. Hoje e amanhã decorre a campanha de recolha de alimentos do Banco Alimentar Contra a Fome, nos súper e hipermercados de todo o país. São esperados 40 mil voluntários.
Os efeitos da crise económica gerada pela pandemia continuam. Joana Rodrigues, responsável pela área social da Cruz Vermelha Portuguesa, aponta que "o aumento dos pedidos de ajuda alimentar (...) tem vindo a ser registado de forma gradual". Em dezembro de 2019, a instituição dava apoio a 15 849 pessoas; em setembro de 2020, a 20 088 e, no final do ano passado, mais do que duplicou para 50 634 beneficiários.
Na AMI, a maioria dos pedidos de ajuda feitos desde o início do ano são para alimentos. E registam-se situações de "casos mais antigos que já tinham mais autonomia e que, no contexto atual, se depararam com a necessidade de voltar a recorrer à AMI". No grupo entram famílias de classe média, que "mesmo a trabalhar, não conseguem fazer face às despesas mensais".
Há ainda as pessoas em situação de desemprego ou os "casais novos" com trabalhos precários, diz António Cândido Silva, presidente do Banco Alimentar Contra a Fome do Porto. Daniela (nome fictício), de 32 anos, é um dos casos. Os "trabalhos pontuais nas limpezas" não são suficientes para sustentar os três filhos, de 11, 5 e 3 anos.
"Com a pandemia, perdi muitas casas. Antes tinha um horário quase completo, agora as pessoas ficaram com medo", revela ao JN. O companheiro tem um "trabalho fixo", mas a mudança de casa, e o consequente aumento da renda, deu uma reviravolta no orçamento. "Vivíamos num T2 minúsculo", conta Daniela.
Faltam fruta e legumes
A família do Porto é apoiada, desde dezembro, em alimentos, roupa e calçado pela Legião da Boa Vontade. Susana Veiga, assistente social da instituição, diz ainda não ser possível fazer uma correlação entre a inflação e os pedidos de ajuda, mas admite que a subida geral dos preços agravou o "registo de fragilidade económica" de muitos beneficiários. A vida das instituições também não tem sido fácil. Isabel Jonet, presidente da Federação Portuguesa dos Bancos Alimentares Contra a Fome, nota que há menos doações de produtos frescos, como frutas e legumes, geralmente dados pelos agricultores como excedentes da produção. "Já contactámos o Ministério da Agricultura", adianta ao JN.
Para a AMI, "a carência de muitos alimentos prende-se quer pela falta de stock dos fornecedores, quer pela falta de empresas a concurso para fornecimento destes bens". Já a Cruz Vermelha Portuguesa aponta que a diminuição da capacidade económica das famílias poderá justificar o "decréscimo na participação das pessoas nas campanhas de vales nos supermercados".
Apesar da expectativa elevada com a campanha nacional de recolha que decorre hoje e amanhã, Pilar Barbosa, presidente do Banco Alimentar Contra a Fome de Braga, diz-se "muito preocupada" com os possíveis efeitos da inflação. A evolução do preço do cabaz alimentar (ler ao lado) deverá diminuir as doações de óleo, azeite e enlatados, conclui.
O que dizem as várias instituições
Legião da Boa Vontade
A instituição apoia entre "250 e 270 famílias" de várias tipologias, desde numerosas a monoparentais, sendo que o desemprego e as prestações sociais baixas justificam a maioria dos pedidos de ajuda para ter alimentos e roupa. Desde dezembro de 2021, a Legião da Boa Vontade tem apoiado também cidadãos estrangeiros, sobretudo de Marrocos e do Brasil, que não conseguem encontrar emprego nos primeiros meses em Portugal.
Ami
A organização revela que a maioria dos pedidos vem "de famílias monoparentais e de pessoas que, apesar de estarem integradas no mercado de trabalho, não estão a conseguir fazer face às suas despesas". A AMI tem registado, desde a pandemia, "um decréscimo nos donativos, nas recolhas e iniciativas ao nível da comunidade local", como agrupamentos escolares, ginásios e corporações de bombeiros. A inflação e a escassez de alimentos e matérias-primas estão a ter reflexos no Programa Alimentar da instituição.
Cruz Vermelha
O departamento de Ação Social aponta que as estruturas locais da Cruz Vermelha Portuguesa têm registado "uma incapacidade de responder a pedidos, por inexistência de produtos alimentares nas delegações ou por incapacidade financeira para abranger mais pessoas no Programa Cartão". A iniciativa "Cartão Dá" surgiu no ano de 2021 e apoiou cerca de 3100 famílias. É destinada ao apoio de famílias vulneráveis para poderem realizar as próprias compras.
Testemunho
Foi o passado de escoteiro que o levou até ao voluntariado já na idade adulta e depois de entrar na pré-reforma no ano de 2018. "Não podia ficar sem fazer nada", diz. Aos 54 anos, José Amorim é um dos mais ativos voluntários do Banco Alimentar Contra a Fome do Porto. Cumpre o horário na sede, como se de um trabalho se tratasse.
"Trabalhava na petroquímica da Petrogal por turnos e tinha de tratar dos filhos", afirma, justificando os quase 30 anos sem fazer voluntariado. Hoje, "faz um pouco de tudo", mas ocupa a maior parte do tempo na distribuição dos produtos frescos às instituições apoiadas pelo Banco Alimentar do Porto.
Enquanto voluntário, José Amorim apanhou um dos períodos mais críticos, o da pandemia. Antes da covid-19, ia até à sede em Perafita, Matosinhos, "uma a duas vezes por semana". Mas a procura por ajuda "aumentou". "Chego de manhã e saio às 17 horas". Fá-lo por gosto. "É inspirador. Sinto-me bem em fazer algo em prol de quem mais precisa", aponta o residente na Maia.
Desde novembro de 2018 tem participado em todas as recolhas de bens alimentares por parte do Banco Alimentar Contra a Fome. Este ano, mais uma vez, não vai faltar à chamada. "São dias cansativos, mas que valem a pena". Na madrugada de domingo para segunda, fica a sensação de dever cumprido.
Falta inspirar
O antigo funcionário da refinaria não está habitualmente nos hipermercados. Fica na sede a fazer o trabalho de todos os dias. "Ajudo na receção dos produtos, que depois vão para a pesagem e são distribuídos pelos tapetes para a triagem", explica ao JN.
José Amorim confessa que não conseguiu contagiar família e amigos com o seu amor ao voluntariado. "Tenho amigos que me dizem que faço muito bem, mas quando os convido, dizem-me que não é fácil". O voluntário admite que é preciso ter "espírito" de missão.