A Comissão Independente para o Estudo dos Abusos de Menores na Igreja revelou sete depoimentos que chegaram ao organismo. Há casos ocorridos na Igreja, em contexto escolar, nos espaços privados dos agressores, nas casas das vítimas. Culpa e vergonha são sentimentos comuns, décadas depois dos abusos. Os relatos aqui expostos têm conteúdo sensível.
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Os números chegaram hoje: a comissão independente responsável por investigar denúncias de abusos sexuais na Igreja Católica em Portugal validou 512 testemunhos, de um total de 564 recebidos. A partir daí, o organismo, que esta segunda-feira apresentou o relatório de um ano de investigação, chegou a 4815 vítimas de abusos que terão ocorrido desde a década de 1950, a maioria entre 1960 e 1980. Quatro mil, oitocentas e quinze vítimas - o número "absolutamente mínimo" estimado a que foi possível chegar e que, por defeito, não refletirá a dimensão da "dura e trágica realidade" dos "crimes hediondos" cometidos pela Igreja, pelos quais o bispo de Leiria-Fátima, D. José Ornelas, voltou hoje a pedir desculpa. A maioria dos casos prescreveu. Para o Ministério Público, foram enviados apenas 25. Os números chegaram hoje. As histórias sempre existiram.
Sete dos testemunhos recolhidos foram partilhados esta manhã, na sessão de apresentação do relatório da Comissão Independente, numa "linguagem dura, intensa e comovente, como foi a vida destas crianças", hoje adultos, transcrita pelos sociólogos Ana Nunes de Almeida e Vasco Ramos. Diferem no contexto, no tempo, no espaço, nas vítimas e agressores, mas assemelham-se nos contornos. Na manipulação e culpabilização da vítima, na ideia nelas incutida de que pecaram, na ameaça e no medo causados, na descrença ou desvalorização das queixas, nos traumas e distúrbios que ficaram até hoje. Na queda em saco roto que agora se cose.
Abusado por padres no seminário e numa instituição
Nascido na década de 50, "Manuel", chamemos-lhe assim, foi abusado por dois padres, em criança e adolescente, primeiro num seminário no interior do país, mais tarde numa instituição de acolhimento de jovens. Cresceu envolto em violência e revolta, atolado em culpa e vergonha, que faziam "encolher tudo para dentro". Tinha tanta raiva do que lhe tinha acontecido que se agredia a si próprio. Só contou aos pais o que lhe acontecera com 21 anos, num almoço. Tantas décadas depois, fala sempre que pode. O "exercício de memória" alivia-o.
Tinha medo porque era pecador e ia para o inferno. Mandava-me ir buscar rebuçados cada vez que tivesse maus pensamentos! Houve um dia em que consegui 26 rebuçados. Quando ia ao seu quarto buscar, ele apalpava-me todo e metia a língua toda.
"Só aos 21 anos desabafei sobre as coisas que me aconteceram no seminário. A minha família é muito católica. Os meus pais tiveram 11 filhos, sendo que quatro já morreram. Nasci em Lisboa nesta casa onde não havia nem água, nem luz. Vivíamos perto dos Jerónimos e sou lá batizado. Íamos à missa todos os domingos. Os meus pais viam em mim a vocação para ser padre. Era assim nas famílias numerosas. Aos 10 anos, vou então para o seminário em X, era uma forma de dar menos despesas aos meus pais, que viviam muito aflitos. O padre B era o prefeito da camarata e engraçou comigo. Ia à minha cama com a lanterna e apalpava-me, perguntava-me se eu já pecara. Vivi sempre sobressaltado. Tinha medo porque era pecador e ia para o inferno. Mandava-me ir buscar rebuçados cada vez que tivesse maus pensamentos! Houve um dia em que consegui 26 rebuçados. Quando ia ao seu quarto buscar, ele apalpava-me todo e metia a língua toda!
Até que comecei a pedir para me confessar com outros padres para não ser sempre o mesmo, só que às tantas todos sabiam dos meus pensamentos e da minha vida. Através de um amigo, chegou aos ouvidos do vice-reitor, que me deu um chapadão, e fui expulso por más companhias. No seminário, as coisas extrapolaram para outras coisas... relação pedófila. Na Páscoa, chegou o postal a dizer que ia ser expulso. Desgosto enorme para os meus pais. Puseram-me a trabalhar, mas não conseguiram. Fui parar a Leiria a um refúgio para infância desvalida. Eram 20 rapazes órfãos. Estava lá o Frei W. Era bem pior porque era sádico, porco, muito mau. Não aprendia nada. Tinha modos por ter andado no seminário e por isso, no meio daqueles rapazes, era eu que acompanhava o Frei W. Um dia, fui com ele a casa de um benfeitor e, durante a noite, disse para dormir com ele. Ia rodando entre os rapazes. Deitava-se e adormecia. Acordava com o pénis dele entre as minhas pernas e todo sujo. Depois dizia 'agora tens que te ir confessar'. Sentia muita culpabilidade. Atolado em pecado. Não contava nada na confissão, sabia lá!"
Abusado durante viagem de finalistas
"João" (nome fictício), nascido na década de 80, filho de professores, tinha 12 anos quando partiu numa viagem de finalistas de rapazes do 2.º ciclo, organizada pela escola particular que frequentava, no interior norte do país. Corria o ano de 2000. Numa noite, foi vítima de abusos por parte do professor de Religião e Moral Católica que o acompanhava, um homem com cerca de 30/40 anos, também padre: "exibição e manipulação dos genitais, toques e beijos em zonas erógenas do corpo, masturbação e sexo oral". Além de "João", outros dois rapazes com quem dividia o quarto, "os mais tímidos, talvez os mais medrosos", também foram abusados nessa viagem, um deles mais do que uma vez.
Ficámos ali todos em silêncio depois de ele nos ter despido, tocado, sugado, mexido até atingirmos o fim. Perverso.
"Tenho vindo a ver o vosso trabalho. Decidi que era agora. Sei que ele ainda é vivo, mas já não trabalha naquela escola. Penso onde andará esse tarado, pois em qualquer sítio fará mal a outros. Nunca me esquece que o X não aguentou e uma noite vinha a chorar, a chorar, e estava sentado na cama dele no nosso quarto. Ele não disse nada e eu também não contei que já tinha sido vítima disso na noite anterior, desse tarado. Então perguntei-lhe se ele tinha medo e ele, a chorar, disse que sim e eu disse-lhe para se deitar na minha cama e assim dormíamos os dois. E adormecemos, mas ele demorou tanto tanto a parar de chorar... Nós estávamos de viagem de turma e estávamos ali sozinhos, longe de casa e dos pais. Não havia nada nem ninguém a quem contar. E só nos consolámos um ao outro. Desculpem, pois agora estou a chorar. Escrevo isto e não sei mais dele. No final dessa viagem, acabámos a escola, separámo-nos e eu nunca mais o vi, soube que partiu com os pais para a emigração.
Sabem o que penso? Onde andará ele? E se um dia isto for com o meu filho? Filho da puta do padre. Desabafei. Esta história eu nunca contei a ninguém. Sou tímido e guardo muito para mim. Penso neles e em como o A aguentou duas vezes. Será que ele lhe fez o que fez a mim? E fez pior ao X? Ou era este mais frágil e aguentou menos a situação? E porque é que nenhum de nós disse aos outros? Ficámos ali todos em silêncio depois de ele nos ter despido, tocado, sugado, mexido até atingirmos o fim. Perverso."
Um caso de confessionário
"Fernanda" (nome fictício), nascida na primeira década do século XXI, tinha 12 anos e frequentava o sétimo de escolaridade. Andava na catequese e, por isso, confessava-se com alguma regularidade. O momento da confissão foi tudo o que não devia ser para si e para outras jovens, que, na altura, fizeram queixa do que lhes acontecera. O asco que então sentira e a manipulação que sofrera mantém-se até hoje, como mulher adulta. Acha-se suja, tem pesadelos, não consegue namorar.
Fiquei com muita vergonha e com pesadelos. Tenho muita vergonha ainda e acho que sou suja. Não consigo ter namorados.
"O padre fazia-me perguntas porcas no confessionário. Obrigava as miúdas a falar de coisas porcas. Ele não tocava nas raparigas, mas perguntava se nos masturbávamos, se enfiávamos o dedo, se pensávamos em fazer amor. O mesmo acontecia com muitas moças dos escuteiros e da catequese. Várias delas juntaram-se e contaram à chefe, que acreditou nos relatos. Disse para não nos irmos confessar mais e que os chefes iam falar com o bispo. Não aconteceu nada! Nada foi feito... Os escuteiros foram expulsos e o padre ainda lá está. E eu sei que faz o mesmo.
Fiquei com muita vergonha e com pesadelos. Tenho muita vergonha ainda e acho que sou suja. Não consigo ter namorados porque tenho medo que me perguntem coisas ou queiram fazer coisas para me sentir porca. O padre meteu-me muita vergonha. E perguntava coisas como se fosse maluco. Arfava e gritava com as raparigas. Ameaçava com o diabo."
Visitava capela de férias com os pais
O quarto caso partilhado pela Comissão foi o de Guillaume, um rapaz de nacionalidade francesa nascido na década de 70, que foi abusado na Capela das Relíquias, no interior do país, quando estava de férias em Portugal, com os pais e o irmão mais novo. Contactou a Comissão e foi entrevistado por Zoom num sábado de manhã. A entrevista foi interrompida a meio, quando Guillaume entrou num choro compulsivo. Ana Nunes de Almeida relatou o caso em discurso indireto.
Coloca o sexo por cima das minhas calças e começa-me a acariciar as nádegas. Cheio de pânico, entro noutro estado.
"Tinha então 16 anos e, como muitos turistas, visitava com os pais a capela na Igreja. Ao saírem, dirigindo-se para a porta, vê alguém que identificou como padre a chamá-lo com a mão. Tivera uma educação católica e, para si, padres eram pessoas em quem se podia confiar. Segue-o. O padre teria uns 60 anos. Leva-o para o fundo da igreja e mostra-lhe uma virgem cujo olhar parecia acompanhar o seu. Achou mágico. Depois, leva-o para a capela, sempre a falar português e com gestos, para lhe mostrar outra coisa. Só os dois. Mostra-lhe os dentes de uma caveira e depois os dele.
Começa a acariciar-se nas calças, sempre a olhar para Guillaume, e Guillaume nota que ele tem uma ereção. 'Não me sinto muito bem, alguma coisa não está bem', disse, em francês. Dá-se conta de que está sozinho com o padre, que se coloca atrás de si. 'Coloca o sexo por cima das minhas calças e começa-me a acariciar as nádegas. Cheio de pânico, entro noutro estado', recorda.
A um dado momento surge um outro homem que interpela o padre. E este, subitamente, começa, afinal, a falar em francês e pergunta a Guillaume se o pai estava com ele. Começa a enervar-se e repele-o, ordenando-lhe que saia. Guillaume sai da capela, entra na igreja completamente vazia e encontra a porta fechada à chave. Fica aterrorizado. Alguém por trás de si abre então a porta e fecha-a de novo à chave. Encontra no exterior os pais, perturbadíssimos, preocupados com a sua ausência e diz-lhes que esteve com um padre. 'Ele fez-me coisas.' A mãe, muito católica, desvalorizou e ralhou-lhe: 'Que mania tens de fugir, assim ficas a saber que não deves afastar-te dos pais'."
O caso reportado hoje pela socióloga fica por aqui, mas o relatório completo dá-lhe continuação. "Entretanto, sai o padre da igreja e, a correr, entra num carro e desaparece. Ainda hoje, Guillaume se interroga sobre qual a razão para aquele homem ter corrido tantos riscos por causa de si. Renunciou certamente ao que queria fazer, porque percebeu que os pais estavam lá fora. Hoje, não tem dúvidas que faria isso habitualmente", pode ler-se.
Abuso no norte rural reportado pela irmã da vítima
A vítima é um homem nascido na década de 40, já falecido, abusado durante a infância num anexo da casa onde vivia, no norte rural do país. O abusador, então padre com cerca de 40 anos, visitava a família depois da morte do pai, para dar apoio à mãe. O testemunho é dado pela irmã.
Estava ele no chão como um animal e o padre por trás
"O meu irmão faleceu agora. Ora, eu penso que ele nunca contou nada do que eu vi, e o que eu vi não foi bonito. Não posso eu ir para o outro mundo, falecendo a carregar comigo este segredo. Uma vez, na tal casita [anexo no quintal], eu estranhei. Quando fui lá espreitar, estava o meu irmão, coitadinho. Estava ele despido, de calças e roupa de baixo, e o padre, assim meio que no chão, a pôr o sexo dele na boca. Nunca tal tinha visto na vida. Dantes, essas coisas não se viam.
Parecia tudo a passar muito rápido, fugi com o olhar. E quando voltei a olhar, estava o meu irmãozito - coitadito dele, o que ele sofreu, sei lá eu o que aquela alma deve ter sofrido - no chão como um animal e o padre por trás a enfiar-se nele. E ele aflito, de lágrimas de chorar. Peço desculpa, já não consigo contar mais. Espero que chegue para saberem que foi tudo verdade. Ele detestava padres, tanto que disse que, quando morresse, não havia de querer nenhum. Que o deixassem ir em paz. Assim foi, quando faleceu agora há pouco tempo".
Abusada na preparação para a primeira comunhão
"Ana", chamemos-lhe assim, nascida nos anos 60, relata o abuso sexual que sofreu em criança, num colégio de freiras, quando se preparava para a primeira comunhão.
As palavras suaves do padre, as festas na mão, na cara, nas costas e, a seguir, dentro das minhas cuecas. Diante da turma, diz que eu sou uma mentirosa, pecadora e que devia ser castigada.
"Quando nos estávamos a preparar para a primeira comunhão, na disciplina de Religião e Moral, a nossa turma de 28 alunas dividiu-se em grupos de dez. O meu grupo foi para a capela, onde ficámos sentadas nos bancos à espera. Um arco à frente e por detrás desse arco, do lado esquerdo, o confessionário, escondido.
À medida que duas, três ou quatro colegas voltavam para os seus lugares, vinham coradas, nervosas. Para mim, estranhas. Quando chegou a minha vez, percebi porquê... As palavras suaves do padre, as festas na mão, na cara, nas costas. E, a seguir, dentro das minhas cuecas. E sempre com palavras suaves. Senti-me mal, não era normal, era esquisito, falso e desconfortável.
Comentei não sei com quem do meu grupo de colegas e, passado um tempo, talvez duas horas, não tenho bem a noção, a madre chama-me ao quadro. Diante da turma, diz que eu sou uma mentirosa, pecadora e que devia ser castigada. Manda-me ir à cozinha buscar uma colher de pimenta em pó, com a nota de que não deixasse cair nem um bocadinho. E cheguei à aula com a colher cheia. Fez-me engolir tudo diante da turma inteira porque era uma pecadora e mentirosa e tinha de ser castigada em público.
Ainda sinto a sensação de quase morrer asfixiada com a pimenta na garganta, nariz, pulmões, olhos e ouvidos. Senti-me violentada pela segunda vez no mesmo dia."
Padre dirigia o coro e ia buscar vítima a casa
A vítima é uma mulher nascida na década de 80, abusada pelo padre da paróquia que frequentava, numa aldeia muito pequena. Era o diretor do coro, catequista e uma pessoa de grande confiança da mãe. Tinha 50 a 60 anos na altura dos abusos. Já morreu.
Despia-me, mas não totalmente. Baixava as cuecas, mexia-me e masturbava-me. Agora a fazer psicoterapia, percebo o sentimento de culpa que senti e que me impediu de contar.
"Não me lembro do princípio, nem do fim. Sei que frequentava o 1.º ano do ciclo e pertencia ao coro. A casa [onde aconteciam os abusos] ficava ao fim de uma rua escondida, onde não havia ninguém. Ele ia buscar-me a minha casa porque eu cantava e havia os ensaios do coro que ele dirigia. Era essa a desculpa. Depois, íamos para a sua casa. Durante mais ou menos três horas, via televisão, lanchava e depois, sentada no sofá, começava a tocar-me. Nunca houve penetração. Só uma vez encostou o pénis ao meu corpo. Despia-me, mas não totalmente. Baixava as cuecas, mexia-me e masturbava-me. Não me lembro como terminou. Mas talvez o facto de eu ter ido estudar para outra escola para fora da aldeia tenha sido a causa. Não me lembro do último dia. A última imagem de que me lembro é de eu própria a masturbar-me.
Agora a fazer psicoterapia, percebo o sentimento de culpa que senti e que me impediu de contar. Sentia que o que me acontecia era por culpa minha e que era errado. Sabia que era algo de mau, que não queria, que não devia acontecer. Mas não me lembro de ser ameaçada. Sentia-me culpada. O padre amigo a quem contei, em 2016, aconselhou-me a ligar-vos. Já na altura do caso Casa Pia congelava quando ouvia as notícias."