Diabéticos e sobreviventes de cancro sem acesso a seguros de vida e a créditos
Lei do direito ao esquecimento está em vigor desde o início do ano, mas muitos continuam a ser discriminados. Empresas alegam que falta regulamentação do Governo.
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As pessoas com diabetes ou que tiveram cancro continuam a ser discriminadas no acesso a créditos bancários, por via do agravamento dos prémios ou da exclusão de hipóteses nos seguros de vida. A lei do direito ao esquecimento entrou em vigor no início de 2022, porém falta chegar a um acordo entre a Banca, as seguradoras e as associações de doentes. Há várias questões que têm de ser regulamentadas, como a grelha de referência com as patologias. A falta de clarificação na legislação está a criar dúvidas e a gerar críticas.
"Muitos utentes disseram que não houve qualquer alteração à contratualização", adianta Alexandra Costa, coordenadora do gabinete do cidadão da Associação Protetora dos Diabéticos de Portugal (APDP). De acordo com a lei, o Governo tem o prazo de um ano para regulamentar o direito ao esquecimento. A situação está a resultar numa espécie de análise "caso a caso", não havendo uniformidade na interpretação da legislação.
"Tivemos um utente que enviou um documento para o médico preencher e comprovar que tinha a doença controlada. O médico passou a declaração e a seguradora aceitou". Sem agravar o valor do prémio, aponta.
A APDP recebeu, no entanto, contactos de quem não teve um desfecho igual com a mesma seguradora. José Galamba de Oliveira, presidente da Associação Portuguesa de Seguradores (APS), diz ser importante "regular os aspetos que precisam de ser regulados e eliminar ou mitigar dúvidas".
Prova de cura
Caso não se chegue a um acordo nacional, o Governo prevê a regulamentação através de um decreto-lei. Ao JN, o Ministério das Finanças responde que "irá consultar os diversos stakeholders, tendo em vista a obtenção de um acordo justo e adequado que assegure os objetivos previstos na referida lei". Fonte da Associação Portuguesa de Bancos diz aguardar a reunião com o novo Executivo.
A Deco Proteste registou, desde o início do ano, 15 casos sobre o direito ao esquecimento. A maioria teve dificuldade ou viu recusado o acesso a créditos à habitação, ao consumo ou a seguros associados.
"Há outro ponto que carece de regras urgentes: a definição do documento a apresentar para provar a cura ou a mitigação da doença, ou incapacidade", revela a jurista da Deco Proteste Magda Canas. A lei aponta que nenhuma informação sobre o "risco agravado de saúde ou de deficiência pode ser recolhida", mas não aponta a necessidade de outro tipo de declaração.
"Algumas seguradoras começaram a adaptação. Mas há uma alteração substancial do que era a prática anterior? Ainda não", defende Andreia da Costa Andrade, jurista do Núcleo Regional do Norte da Liga Portuguesa Contra o Cancro. Apesar dos casos, a APS diz não ter "conhecimento de que tenham existido problemas".
José Galamba de Oliveira admite que as seguradoras "têm tentado dar cumprimento à lei, o melhor que sabem e podem, apesar das dúvidas e incoerências que a mesma suscita". Para o deputado socialista Miguel Costa Matos, que apresentou o projeto-lei do direito ao esquecimento, se a discriminação continua, é "moralmente repugnante".
O carimbo da doença ainda as persegue na compra de casa
Nicole Henriques, de 25 anos, comprou com o companheiro dois imóveis antes da entrada em vigor do direito ao esquecimento. Aos seis anos, foi-lhe diagnosticada diabetes do tipo 1 e tem, desde então, a doença controlada. Mas o agravamento dos dois prémios dos seguros de vida - um por cada casa - não tardou. "Tive um aumento de 350% e, no outro, de 950% com a exclusão de incapacidade. Os seguros só cobrem em caso de morte", explica.
Assim que tomou conhecimento da lei, tentou renegociar os valores dos prémios com novas seguradoras. Consultou uma mediadora que, após uma simulação, verificou que teria acesso a melhores propostas. Avançou, mas esbarrou no questionário médico, mesmo depois de ter mencionado o direito ao esquecimento. "A resposta que me deram [de uma seguradora] é que não me iam fazer nenhum dos seguros de vida, para os dois imóveis, devido ao meu estado de saúde", explica a enfermeira de formação, que gere agora um negócio online em nome próprio, desde Aveiro. "O que é que tiveram em conta?", questiona.
Encaixar na lei
Antes da entrada em vigor do novo diploma, talvez não tivesse insistido. Desta vez, enviou um email a mencionar a lei. A seguradora disse que "tinham o direito de assegurar o seu próprio risco, especificando que o problema era a diabetes", recorda. Numa nova resposta, a empresa fez referência à lei e escudou-se na falta do acordo nacional para fazer uma proposta.
Ao contrário de Nicole, Sara Borges, de 34 anos, não tinha noção do "poder" do direito ao esquecimento. Apenas quando iniciou o processo de compra de casa, teve consciência das dúvidas e das dificuldades que enfrentaria. Foi-lhe diagnosticado linfoma de Hodgkin há dez anos, tendo os tratamento terminado em dezembro de 2012. "Tive dúvidas em que parte da lei eu encaixaria", aponta ao JN.
"Clinicamente curada"
O diploma prevê que nenhuma informação sobre o risco agravado de saúde possa ser pedida em situação pré-contratual, desde que tenham passados dez anos do término dos tratamentos em caso de doença grave, cinco anos se a patologia for diagnosticada antes dos 25 anos ou dois anos de protocolo terapêutico continuado e eficaz, em caso de risco agravado de doença ou deficiência mitigada.
"Tentei esclarecer com várias seguradoras. Mas nunca houve um "sim" ou um "não". Diziam-me: "se vai invocar a lei do direito ao esquecimento, tem de trazer um documento assinado por um médico", conta. A seguradora do banco propôs um seguro de vida que excluía a hipótese dos 60% de incapacidade ou de qualquer facto relacionado com a doença.
A assistente de programação cultural já não é seguida em oncologia, mas marcou uma consulta para tirar as dúvidas. "O médico disse-me que clinicamente estou curada, mas juridicamente não". De acordo com os prazos definidos no diploma, faltam oito meses para Sara completar os dez anos de término dos tratamentos.
Mesmo não se resignando ao que lhes foi dito por terceiros, as duas vão por agora aceitar as debilidades a que o direito ao esquecimento ainda não pôs fim. "Eu fiquei em stand-by por agora, porque também me chateia estar sempre a ser recusada", diz Nicole Henriques.
Sara Borges não pode esperar até ao final do ano. Vai ter direito ao crédito para a casa e aceitar o agravamento no seguro. Foi-lhe dito por uma mediadora que terá a possibilidade de renegociar quando chegar à meta dos dez anos. "É frustrante", assegura.