"Pai aos 50" é um espaço de opinião semanal assinado pelo escritor Joel Neto
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E a quem possa achar que, vivendo numa ilha, nem o Artur nem o irmão (ou irmã, logo que saibamos bloqueio o género) poderão ter acesso à experiência completa, então eu hei-de contar a história do estreitamento da via aqui uns metros mais abaixo, da venda do Francisco à casa da Zélia (às vezes já da casa da Filomena até à casa dos Poeiras). Nunca, até há um ano ou dois, tinha havido problemas. Entretanto, tornaram-se tantos os carros estacionados que todos os dias ficamos com 100 metros (frequentemente 200) com uma via só - e, desde que os dois primeiros revoltados decidiram usá-lo para ajustar contas com a respectiva invisibilidade que todos os dias vem a lume a panóplia completa das ansiedades da condição humana.
A ver se eu consigo explicá-lo num parágrafo. Estando todos os carros estacionados de cima para baixo, a prioridade é para quem vem de baixo. Ora, de manhã, a freguesia em peso desce à cidade, subindo apenas os padeiros, os guardas-nocturnos e os fisioterapeutas que vêm tratar dos velhotes. Pois esses têm sempre de enfrentar cinco minutos de insultos - porque também podem esperar um bocadinho, ninguém tem culpa daquele aperto, o melhor é os que chegam e os que partem se irem alternando, não sejam egoístas mas é, ah filhos duma grandessíssima, excomungados! Entretanto, à tarde voltam os mesmos empregados todos para cima, agora com prioridade, descendo apenas desportistas, músicos de filarmónica e eu próprio a caminho da livraria. E ai do que de nós tentar chegar ao fim do estreitamento, porque mesmo estando já a comprimento e meio do destino há-de haver sempre um que se indigna - que a prioridade é dele, que temos mais é que esperar, que toca lá a recuar até ao início do estreitamento, anda mas é estupor, cara de cu do demónio!
Enfim, aqui também há carros, acho que é isso que quero dizer. Onde há carros há política. As mulheres - quase todas - tentarão confrontar o patriarcado, reclamando direitos, condicionando, fazendo bullying se possível. Os homens tentarão pôr-se uns aos outros na linha, que há demasiados anos não mandam em nada, nem ninguém lhes dá cavaco, e poucos até se lembram de que existem. E o pior de tudo é que ambos têm boas razões para se sentirem assim.
Está aqui mesmo, o ensinamento - é só sair o portão. E isso não difere do que se passa por todo o lado, o país e o Mundo. De tanto se alimentam a amargura e o ódio que, da Rússia aos EUA e do Brasil à Hungria, têm feito crescer a extrema-direita até um ponto em que se pode dizer que nada aprendemos com a História. Mostram-no os meus vizinhos, todos os dias, uma vez de manhã e outra vez à tarde: é só termos curiosidade sobre o que as coisas significam. Eis quanto basta, praticamente, ensinar aos nossos filhos (e ensinamos cada vez menos).