Ser mãe, cuidar dos filhos e do marido, dedicar-se ao trabalho doméstico, abdicar de uma vida profissional. Decisão pessoal ou cultural? É um fenómeno com múltiplos fatores, uma reflexão que tem de ser feita.
Corpo do artigo
O modelo tradicional da mulher dona de casa, doméstica, a tratar da família, sem lugar no mundo laboral, circula pelas redes sociais e pela vida real. Há um movimento que ganha força, sobretudo nos Estados Unidos e em Inglaterra, a tendência “tradwife”, que coloca a mulher num papel que parece não bater certo com o século XXI. Sinais dos tempos? O que está a acontecer?
Sara Ferreira, psicóloga clínica, analisou o fenómeno “tradwife” ao detalhe. “Não se trata apenas de um revivalismo doméstico ou de uma excentricidade estética das redes sociais. Trata-se de um gesto político – ainda que, muitas vezes, inconsciente – que tenta reverter o curso de uma história que caminha, com esforço, mas com convicção, rumo à libertação”, comenta.
A domesticação, neste contexto, é um paradoxo, uma provocação à razão, só que há o medo, o cansaço, a exaustão. Para algumas mulheres, nota Sara Ferreira, “o espaço doméstico pode transformar-se numa espécie de refúgio diante da tempestade do mundo exterior.” “O caos do universo moderno – cheio de disputas, guerras silenciosas, revoluções tecnológicas e crises existenciais – torna a suposta estabilidade do lar uma promessa tentadora”, refere. O lar como defesa e abrigo perante um mundo lá fora confuso e dissonante.
Catarina Lucas, psicóloga clínica e psicoterapeuta, enquadra a realidade. “Este movimento surge como resposta a uma sociedade em constante mudança, onde muitas mulheres se sentem sobrecarregadas e procuram segurança em papéis tradicionais.” E não só. “Também é alimentado pela romantização, nas redes sociais, de uma ideia idealizada da ‘boa esposa’ submissa, ignorando as desigualdades que esse modelo carrega”, acrescenta.
Há cada vez mais mulheres que abdicam dos empregos para se dedicarem à maternidade, abandonando o mercado de trabalho para corresponder a um modelo de mãe exclusivamente cuidadora. É um facto. A romantização também. “A opressão é vendida como escolha. A subalternidade como estilo de vida. E isso é o mais perigoso: quando a submissão é estetizada, ela deixa de parecer violência. Torna-se aspiração”, avisa Sara Ferreira.
Não, não é um fenómeno simplista, há vários fatores em jogo, questões culturais e pessoais que se cruzam numa sociedade cada vez mais implacável. O que leva uma mulher a pensar que o seu lugar é apenas em casa nos dias que correm? “Muitas vezes, é uma forma de procurar segurança, pertença e um sentido claro de identidade. Há mulheres que veem nesse papel uma resposta ao cansaço das exigências modernas e à pressão para ‘dar conta de tudo’”, responde Catarina Lucas. Há ainda a influência de valores conservadores ou da forma idealizada como esse estilo de vida é mostrado nas redes sociais. As práticas parentais de presença absoluta para os filhos também podem ter impacto nestas decisões, segundo a psicóloga.
Para Miguel Ricou, psicólogo clínico, professor universitário, é necessário olhar para os vários lados da questão e até que ponto as situações são positivas ou negativas, se é opção, se é submissão. “Qualquer mulher e qualquer homem devem ter a possibilidade de fazerem as escolhas que entendem ser as melhores para a sua vida.” Desde que tenham condições para o fazerem sem críticas ou julgamentos rápidos. “Pode haver mulheres que podem querer assumir essa condição”, de dona de casa em exclusivo, e “mesmo homens que querem assumir essa posição de ficar em casa e que enfrentam um discurso mais crítico”, repara.
O assunto é sério e, segundo Miguel Ricou, parte-se de um pressuposto errado. “A ideia de que ser autónomo é tomar decisões de uma forma totalmente individual.” Não é assim, há influências de vários contextos sejam sociais, culturais ou políticos. “Todas as opções têm coisas boas e coisas más e disso ninguém se pode esquecer.” É uma questão de equilíbrio, afirma o psicólogo. De decidir, de escolher, de não submissão a qualquer tipo de poder, de ser livre. “Não há uma forma certa ou uma forma errada de viver de forma absoluta.”
É uma escolha genuinamente livre? Ou uma fuga disfarçada? Sara Ferreira aborda o ângulo da dependência. “Uma mulher que escolhe o lar como centro da sua vida pode estar a projetar no seu parceiro a figura do herói, do príncipe salvador, do pai. Do marido que supostamente ‘sabe’ o que é melhor para si”, diz, lembrando a posição de fragilidade que isso acarreta. “E pode existir um certo conforto nessa posição passiva, afinal, andar pelas próprias pernas dá medo, até angústia e pode ser paralisante. Ela age como se precisasse de ser conduzida, protegida, fiscalizada, nutrida, adestrada.”
Dominação e desigualdade
Nem todas as mulheres que escolhem um estilo de vida mais tradicional o fazem por imposições externas, algumas veem aí uma forma de dar sentido à sua vida, num mundo que sentem caótico ou exigente, observa Catarina Lucas. “Há variados fatores como a exaustão do papel atual da mulher, o desejo do regresso a uma vida mais tranquila que tomar conta da casa e dos filhos lhe poderá trazer, a realização pessoal e até os novos modelos de parentalidade que defendem a presença da mãe durante mais tempo.”
Será um retrocesso de conquistas e lutas das mulheres? “Não temos certeza de que seja um retrocesso, mas um sinal de que a liberdade também implica poder escolher caminhos diferentes – mesmo que esses caminhos pareçam contraditórios com conquistas anteriores. O importante é garantir que essas escolhas são feitas com consciência, e não por pressão, idealizações ou falta de alternativas”, sublinha a psicóloga.
Sara Ferreira vê várias coisas, o retrocesso, “o espasmo de um sistema em colapso”, um “refluxo civilizacional” como “o grito desesperado de um patriarcado ferido, que tenta desesperadamente colar os cacos da sua autoridade esvaziada”. “É o sintoma de uma masculinidade em crise, que não sabe como existir num mundo onde a mulher já não se submete automaticamente, já não se cala, já não se contenta com o canto da cozinha.” Por isso, digerir o “tradwife” seja difícil. “Esses movimentos minam, sim, as conquistas feministas – mas não as derrotam. São ameaças, são ataques, mas não vitórias. São ruídos, não silêncios.” E acrescenta: “A igualdade não é um destino. É um processo em permanente construção. E mesmo que seja atacada, adiada, deturpada, ela volta sempre, como aquilo que se tornou já inevitável”.
Para Catarina Lucas, a igualdade, a liberdade, conquistas e lutas das mulheres, podem ser colocadas em causa quando estereótipos de género são reforçados e a desigualdade surge como um ideal de vida. “O impacto depende da forma como a sociedade responde – se houver pensamento crítico, diálogo e educação, estes movimentos podem até servir para reforçar a importância da igualdade”, sustenta a psicóloga, que avisa ser importante estar em alerta para que não haja recuos. “Queremos que a liberdade se mantenha, mas sermos livres para escolher estar no mercado de trabalho ou ser dona de casa.”
Os homens têm um papel nesta discussão, na construção de um futuro mais igualitário. “Eles devem questionar os próprios privilégios e apoiar a igualdade, mas também refletir sobre o impacto de certos modelos que reforçam a dominação e a desigualdade. O diálogo entre mulheres e homens é essencial para avançarmos juntos”, defende Catarina Lucas.
Sara Ferreira concorda. Esta é uma luta de todos e os homens não podem ficar fora do debate, devem ser “cúmplices ativos na desconstrução de um mundo que também os aprisiona”. E não tem dúvidas. “Este não é apenas um tema sobre género. É um tema sobre o futuro. E o futuro, por mais que tentem enjaulá-lo com aventais, já começou. E é feito de vozes múltiplas, corpos insubmissos, e de uma liberdade que não aceita mais a camuflagem da opressão como escolha individual.” Não se pode parar o tempo e não se pode estancar lutas.