Todos, de algum modo, conhecemos na infância a instrutiva fábula da cigarra e da formiga, cuja narração original é atribuída a Esopo. Esta, mais precavida, trabalha no bom tempo para acautelar as necessidades do inverno, enquanto a cigarra, de natureza indolente, tem de bater à porta da amiga a mendigar alimento quando o frio chega, depois de ter passado o tempo estival em cantorias.
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Mal comparando, Portugal assemelha-se bastante à desmazelada cigarra - e nem os rigores da pandemia e da guerra em curso na Ucrânia nos serviram de lição, apesar dos evidentes efeitos que aquelas circunstâncias impuseram às economias ocidentais e em particular ao nosso país, com efeitos bem visíveis ao nível da inflação e da redução generalizado do poder de compra.
Três anos volvidos desde o início da pandemia, mantêm-se as endémicas vulnerabilidades nacionais no domínio da autonomia energética e da autossuficiência alimentar. O que se vê é desolador e só em novembro último, por exemplo, 7,6% da eletricidade que consumimos era de origem nuclear (e, portanto, importada), ao passo que a nossa produção industrial continua altamente dependente de componentes produzidos em países igualmente vulneráveis e sujeitos a grandes riscos, à mercê de cadeias logísticas cuja fiabilidade a pandemia demonstrou ser muitíssimo questionável.
Urge, pois, que Portugal seja capaz de delinear um plano nacional passível de acautelar que as crises futuras não voltarão a apanhar-nos desprevenidos, garantindo-nos a autossuficiência energética e alimentar e, no limite, a sobrevivência em situações de dificuldade e instabilidade como aquelas que temos enfrentado nos últimos três anos. A cornucópia de fundos comunitários do PRR devia, aliás, servir em primeira linha para impulsionar a concretização de uma estratégia rigorosa posta ao serviço deste desígnio.
De contrário, as gerações presentes e futuras continuarão à mercê de novas e previsíveis disputas territoriais, com o seu bem-estar ameaçado por um país entregue ao fado de continuar a ser a cigarra da fábula que La Fontaine fixou para a memória presente.
*Reitor da Universidade do Porto