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Se me perguntam se prefiro estacionar em frente à mesa do café, com o cheirinho dos escapes, talvez diga que sim. Mas será que o meu comodismo pessoal tem o direito de se impor à cidade organizada, cívica, sustentável? Não, não há esse direito.
Ao longo dos últimos anos, a melhoria da cidade para as pessoas tem sido coerente:
⁃ Sentidos únicos para garantir segurança e fluidez; quem faz mais uns metros fica irritado, no início;
⁃ Pedonalização de centros cívicos locais, mais bonitos e aprazíveis; quem estacionava à porta da igreja fica indisposto, no início;
⁃ Criação de faixas exclusivas para transportes públicos, partilhadas com bicicletas; quem circula no seu carro acha um desperdício, no início;
⁃ Pedonalização da Beira-Rio, garantindo espaço público de fruição sem carros no Centro Histórico. Hoje, ninguém aceita lá devolver as filas de carros.
Por estes dias, o debate público não se faz sobre as novas e necessárias formas de mobilidade suave e sustentável, mas sobre as lamúrias de não se poder estacionar ilegalmente na avenida central de Gaia. Sim, o estacionamento sempre foi ilegal.
A Avenida da República tem vários parques de estacionamento. A questão é mesmo o comodismo. Ao lado das Finanças há um parque, mas era mato o estacionamento nessa zona. No Pingo Doce há um parque gratuito para clientes, mas a opção fácil era ter a zona pejada de carros comodamente instalados.
A introdução de uma ciclovia corresponde a uma ideia de cidade para todos, onde o espaço convive com a mobilidade suave. No caso de Gaia, surge com a expansão da linha de Metro a Vila d’Este. São mais de 15 mil pessoas que podem ser cativadas pelo comércio local, se houver iniciativa e não apenas marketing da porta aberta.
Sabia o que surgiria: algum comércio a defender o estacionamento ilegal, em vez de melhorar o serviço, condutores a lamentarem a existência de regras para carros e ciclistas a lamentarem as pessoas incumpridoras. Sempre foi assim, no início.
Talvez valha mais a pena pensarem em estratégias de cativação de clientes: melhor serviço, pagamento de estacionamento a clientes, promoções interessantes... O município ajuda na isenção de taxas para o comércio reforçar a sua competitividade.
Gaia não é uma periferia. É uma cidade moderna, vivendo as tensões de um processo evolutivo que a todos beneficia, mesmo a quem não as percebe. Não adianta ostentar um full hybrid se agirmos como no tempo da máquina a vapor.
Cortar aos passeios para criar mais estacionamento, como alguns sugerem, é arqueológico. Na cidade das pessoas, corta-se nos carros para dar espaço a árvores e a pessoas, nunca o contrário.
O argumento das cargas e descargas é uma dissimulação para defender o estacionamento selvagem. Há locais próprios marcados para as cargas e descargas. Há horários regulamentares, não se deixa a cerveja ou a farinha à hora que calha. É assim em Gaia, nos Aliados, na Rua Augusta, na Ribeira, em todo o sítio.
Quanto às ambulâncias para as clínicas: como nas outras cidades, deixam o utente e vão buscá-lo no final do tratamento, não ficam prostradas à espera na avenida central.
Esta postura de circulação na Avenida da República foi aprovada por unanimidade na Câmara e na Assembleia Municipal. Não fazia sentido uma solução destas em período de Covid e de pós-Covid, quando todos recuperávamos. Agora podemos avançar todos, numa cidade melhor e aprazível. É assim nos sítios decentes que visitamos, é assim onde moramos.
O ataque de alguns à ciclovia é um ataque retrógrado a um grupo cada vez maior de gente que usa e usará a bicicleta e a trotinete. Esses clientes é que já estão perdidos para quem lhes diz que estão a mais na cidade.