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O meu pai foi ontem para o céu. Chamava-se Manuel Leitão Diogo e nasceu em 1937, num Portugal de olhos baixos, com medo da Guerra Civil Espanhola, em vésperas da Segunda Guerra Mundial, e onde a palavra liberdade não era dita, nem em surdina. Morre agora, 88 anos depois, num Mundo mais livre, que fala alto, mas ouve pouco. Um Mundo muito diferente – mas ainda capaz de reconhecer um gesto bom quando o vê.
O meu pai era operário, militante da Juventude Operária Católica e depois, mesmo sendo pobre, conseguiu ser professor. Sempre foi democrata. Antes de abril já acreditava nas pessoas. Depois de abril, ensinou-lhes o caminho. Teve milhares de alunos, todos na mesma cidade – Castelo Branco – onde a sua figura era tão familiar como os plátanos das praças. Viveu com a humildade dos grandes, e ensinou com a firmeza dos justos.
Mas não foi isso que me fez quem sou. Foi um gesto. Um só.
Na avenida 1.° de Maio, eu era criança. Um homem caído no chão, bêbado e ridicularizado. Toda a gente passava. O meu pai não. Parou, levantou-o, e – sem uma palavra – tirou o casaco do corpo e colocou-o nos ombros do homem. Um casaco como quem devolve a dignidade. Como quem dá um nome. Como quem ensina a amar.
Essa memória é meu alicerce. E é-o também para os meus filhos – Diogo, Carolina e Manuel –, este último assim chamado, por mim e por sua mãe, em homenagem viva aos meus pais agora falecidos: Manuel e Maria. Hoje, com o meu irmão João, somos os mais velhos da família. É a nossa geração que passa a guardar a chama. O meu pai, Manuel, morreu. Mas o gesto ficou. E, com ele, o nome.
Dos meus pais, agora os dois juntos no céu, recebi as mãos, o olhar e o silêncio que acolhe. E também aquele casaco. Que não nos proteja do frio – mas da indiferença.