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O dólar já acordou. Mas não no Banco Central – acordou no telemóvel da Dona Ivone, que vende marmitas no Capão Redondo, e no e-commerce do Ti Zé, que exporta cuecas de algodão da Beira Baixa para Miami. Ambos recebem USDC. Ambos usam Pix. Nenhum passa pelo IOF. E nenhum dorme.
Acordou, também, no software silencioso que liga a conta bancária da senhora à stablecoin do senhor. E acordou com um clique, como quem chama um carro ou encomenda um jantar. Porque o dinheiro, agora, não se esconde nos cofres – circula, vibra, escapa. Porque a moeda – esta moeda digital, estável, regulada fora de casa – não tem pátria, não tem fuso horário e, sobretudo, não pede autorização para existir.
Enquanto isso, o Estado dorme. Não por preguiça, mas por hábito. Há séculos que acorda depois da inovação. Foi assim com o telégrafo, com o petróleo, com a Internet. Agora, é com a moeda.
O problema não é a festa – é não saber quem está a servir os copos. Sem regulação clara, o risco não é apenas fiscal: é institucional. É deixar que o valor, esse bem simbólico por excelência, seja determinado por protocolos que não votam, não prestam contas e não têm CPF. A moeda digital, se não for regulada com inteligência, será como um navio sem bandeira – útil, veloz, mas invisível ao radar da soberania.
E é aí que entra a verdadeira questão: queremos ser os autores do próximo capítulo ou apenas as suas notas de rodapé? O Brasil, por exemplo, ao integrar o USDC ao Pix via Matera e Circle, ensina ao Mundo uma nova gramática financeira. Portugal tem tudo para aprender com isso – e fazer melhor. A começar por assumir que moeda é linguagem, e que só a regula quem a fala com clareza.
Há uma verdade silenciosa a flutuar nos nossos bolsos digitais: quem acorda tarde perde o banco.