Corpo do artigo
Sobre milagres, li um dia, não me lembro em que breviário, que a coisa comum que os caracteriza - caso realmente existam - é, à primeira vista, nunca parecerem sê-lo.
Mas quando a mão direita enluvada a negro do maestro João Carlos Martins toca as teclas do piano e delas tira o som que enche a sala, de imediato percebi: o coração quase pára, o respirar quase pausa e o amor quase se vê. Deve ser isso o que sentem apóstolos e mártires na presença iminente desses milagres.
Quase esquecemos que o mal existe e acreditamos de novo que o belo prevalece, que a arte é sublime, e que isso nos anima a acreditar que a Humanidade transporta o mundo a paragens tão belas quanto a batuta do João.
É preciso dizê-lo: milagres assim precisam-se muito. Enquanto as mãos do maestro soletram com maestria o hino brasileiro que a todos une, a plateia inteira - mais de 3 mil que enchiam o auditório Ulysses Guimarães - se faz vidente involuntária do acontecimento extraordinário que foi o concerto inaugural das comemorações do bicentenário da criação da casa da democracia, o Senado Federal, hoje presidido pelo meu amigo, mineiro e democrata Rodrigo Pacheco.
Deve ter sido isso que todos pensaram quando em França, no ano da revolução, uns quantos gritaram “liberté, égalité, fraternité”, ou um inglês de voz dura jurou na rádio “we shall never surrender” o mesmo quando, precisamente há 50 anos, aqui em Portugal uns quantos soldados encheram de cravos os canos dos seu fuzis e a terra lusa de liberdade.
Também esses momentos devem ter parecido milagres, tão belos e irrepetíveis como as notas simples que saíram das mãos do maestro João Carlos Martins quando, no dia 25 de março, celebraram a força indestrutível da democracia brasileira.