A noite foi tão longa que os ponteiros do velho despertador de ferro andaram ao contrário.
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Na escuridão, o caiado das paredes só deixava brilhar o recorte de um crucifixo por cima da cabeceira. Congelámos, apesar de estarem uns 30 graus e, embalados por pios de coruja e pelo ranger do soalho, dormimos de olhos abertos e com a porta do quarto fechada à chave. O Sol acordou e nós levantámo-nos, concordando ter ouvido murmúrios de rezas. E outros barulhos semelhantes aos das histórias de exorcismos que o padre Lemos me contara numa madrugada de Páscoa, acrescentei. Há mais de 30 anos, no dia em que nos convidaram para uma quinta junto ao rio menos poluído da Europa, esperávamos tudo menos viver um thriller para adolescentes. Voltei a lembrar-me disto. Como me ocorrera há 19 anos. Agora, por causa de um incêndio. Não se perderam vidas, como quando caiu a ponte. E aquela gente de pulmão verde há de saber renovar-se, tocando a vida e enterrando as memórias sombrias, deixando-nos, a mim e ao Guerra, a magia de Castelo de Paiva, um paraíso vizinho do Porto que abre a caixa das minhas melhores recordações. E as fechaduras. De manhã, a chave tinha rodado sozinha pelo lado de dentro, jura o Guerra.
*Jornalista