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O beijo forçado de Luis Rubiales a Jenni Hermoso, e toda a controvérsia subsequente, teve o mérito de colocar o sexismo no centro do debate mediático em Espanha, um país onde a violência de género assume proporções endémicas, e a nível mais global, mas teve também um efeito perverso: transferiu a atenção do que foi uma conquista histórica num campo tradicionalmente masculino para um inflamado ego machista.
A não demissão de Rubiales, que chegou a ser dada como certa no fim da semana passada, vai muito para lá da arrogância de não aceitar o que devia ser óbvio: ninguém pode beijar, tocar ou impor qualquer contacto sem consentimento, principalmente quando há uma relação de poder. O que está aqui em causa, mais uma vez, é a estratégia de culpabilizar a parte mais vulnerável e desresponsabilizar o autor do abuso. Segundo a imprensa espanhola, a decisão de se manter no cargo - “Não me demito”, disparou seis vezes, com aplausos dos técnicos das seleções feminina e masculina - foi sustentada num relatório que estaria a ser preparado pela Real Federação Espanhola de Futebol (RFEF) a urdir a teoria de que a jogadora teria consentido, e até incentivado, o beijo que ela já repudiou. Esta tese ganha força com o comunicado, retirado do site após a decisão da FIFA de suspender Rubiales, em que a RFEF dizia que a “sra. Jennifer Hermoso mente em todas as declarações que formula, endereçadas ao presidente” e ameaçava processá-la por “falsificar a realidade”.
Além de uma intolerável cultura de proteção machista, o que subjaz a tudo são interesses milionários bem instalados e distribuídos. Rubiales - alvo de acusações de desvio de fundos, cobrança de comissões, utilização do dinheiro da RFEF para pagar orgias e de tratamento desigual das jogadoras de futebol - não se agarra só à sua genitália (como o fez no jogo final em que Espanha venceu por 1-0 a Inglaterra), mas a um salário de 670 mil euros por ano (sete vezes o do primeiro-ministro espanhol). Mais 250 mil euros por ser vice-presidente da UEFA. E não espanta que tenha o apoio dos restantes membros da federação: foi ele quem aumentou os seus proveitos para 150 mil euros anuais. Pressionada pela FIFA, a RFEF reúne-se hoje para tentar conter os danos que esta polémica poderá causar à candidatura ibérica para organizar o Mundial de 2030.
Mais do que a demissão, impõe-se uma mudança de paradigma para que se volte a falar de futebol pelos melhores motivos.