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Passeámos nas avenidas do Repouso como quem anda entre montras na Santa Catarina. Não sei o que nos levou aos mortos, mas certamente que terá sido um pressentimento de vida, uma curiosidade, um assomo de coragem. Recordo a sua memória de Eugénio de Andrade quando travámos o passo na sepultura rasa desenhada por Siza – “sabes que ele nunca escreveu a palavra felicidade?”, perguntou-me Manuel António Pina sem esperar que lhe respondesse.
Não entendi nessa manhã o seu silêncio mascarado de palavras. Não percebi que era um silêncio de antecipação, que os seus olhos talvez procurassem a casa onde repousaria na terra. Falámos da sua crónica no “Jornal de Notícias”, uma última página que obrigava os leitores a começarem pelo fim, ou o contrário… a deixarem o melhor para o fim, o mais poderoso digestivo ou a mais deliciosa sobremesa.
Volto hoje ao Prado do Repouso. Torno ao lugar que visitámos poucos anos antes da sua partida. Eu quis saber dos que lá estavam e o Pina matou-me a curiosidade sem atropelar a estupidez de eu não ter entendido nada. De não ter entendido que o cronista dos cronistas passeara comigo naquela manhã de vida sabendo que era ali que um dia adormeceria sem hora para acordar.
Preciso que saiba o quanto reconheço a minha responsabilidade de estar aqui. Responsabilidade perante quem me lê, perante um jornal que é património do país e perante Manuel António Pina a quem tentarei honrar nesta página que será sempre dele. E se um dia ele voltar a acordar, ou eu resolver adormecer, falaremos por outras palavras do tempo em que ainda era cedo e as nossas mães gritavam por nós na janela.
Até amanhã.