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Ficou tristemente célebre, no verão de 2022, a frase de Graça Freitas: “A pior coisa que nos pode acontecer é adoecer em agosto”. Ainda no rescaldo da pandemia e na antecipação de comportamentos de risco, a diretora-geral da Saúde alertou para a sífilis e desaconselhou o bacalhau à Brás por causa das salmonelas. Quase um ano e meio depois, o pior que nos pode acontecer é adoecer. Ponto. Porque o SNS vive uma das piores crises de sempre.
Por um lado, o número de portugueses sem médico de família não pára de aumentar - quase 1,7 milhões, numa clara demonstração da vacuidade da promessa feita em 2016 por António Costa, ao lado do pai do SNS António Arnaut, de que num ano iria acabar com os utentes a descoberto. Por outro, porque há cada vez mais serviços hospitalares condicionados pela recusa dos médicos de continuarem a segurar as pontas de um Serviço Nacional de Saúde comatoso a sobreviver às custas de injeções massivas de trabalho extraordinário.
Não se trata de greve, sublinhe-se. O que está a acontecer é que mais de dois mil médicos estão indisponíveis para laborar mais do que as 150 horas anuais a que estão legalmente obrigados com as atuais condições. Há serviços em que todos os profissionais aderiram ao movimento que nasceu no Alto Minho e que rapidamente alastrou a nível nacional. De tal forma que o maior hospital do país, o Santa Maria, assoberbado, ativou o plano de contingência e fechou a urgência a doentes não urgentes por falta de capacidade de resposta.
Nada disto deveria apanhar de surpresa o Governo. As negociações começaram no ano passado e, em agosto deste ano, o Ministério da Saúde foi avisado de que os médicos estavam saturados e iriam recusar mais horas extra. Mas assobiou para o lado. E agora, numa altura de afluência normal, muito longe dos picos de procura provocados pelas infeções respiratórias e gripes no inverno, o caos está instalado. A correr atrás do prejuízo, Manuel Pizarro convocou os sindicatos para nova reunião negocial a ter lugar amanhã, depois de nas anteriores ter apresentado propostas de aumentos salariais e de dedicação plena recusadas pela classe.
Em semana de apresentação do Orçamento do Estado, o que se exige de Costa é que, tendo sido incapaz de cumprir a promessa de garantir a todos médico de família, consiga olhar para o país para lá do Excel e se foque na resolução dos problemas dos portugueses. Para que adoecer não seja o pior que nos pode acontecer.