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Agora que tenho na bancada da cozinha três garrafões de água, duas grandes embalagens de pão Bimbo, papel higiénico em quantidade, quatro latas de feijão, três de salsichas, uma de salmão e outra maior de atum, além de fruta e velas para alguns dias, e – mais importante – comida de bebé para pelo menos uma semana, dizem os impolutos, vulgo as redes sociais, que tenho de explicar as minhas acções.
Eu não sei se eles vão conseguir ouvir esta resposta tão natural e humana, que é minha e de outros milhares que fizeram o mesmo.
Dez minutos depois do apagão, saí do escritório já Lisboa se tinha vestido do avesso. Dava a sensação de que a cidade estava oca, igual mas de maneira muito diferente, e corriam informações díspares: que o apagão afectara a Europa inteira e que fora causado por ciberataques, um incêndio numa linha de alta tensão em França, um avião que caíra, fenómenos meteorológicos raros e tudo o que a imaginação pudesse inventar.
Face à incerteza de quanto tempo ficaríamos sem luz, saí disparado em busca de víveres, qual caçador-recolector. No primeiro supermercado, o gerador desligou-se antes de eu conseguir comprar mantimentos. Aprendi que os supermercados morrem de boca aberta: as portas automáticas reservam o último suspiro para nos deixarem sair.
Uma hora depois do apagão, no segundo supermercado, as pessoas ainda conseguiam falar ao telemóvel. Eu já tinha falado para a creche da minha filha, com a minha mulher, os meus pais. Pus-me a ouvir a angústia das centenas de pessoas que aguardavam para pagar, cheias de medo que o gerador desistisse.
“A minha mãe de noventa e cinco anos está acamada em casa, preciso de lhe levar comida.” “O meu irmão tem uma deficiência, vou ter com ele.” “Já não consigo falar para o meu filho, que está na escola no outro lado da cidade.” E um velho senhor, que mal aguentava o peso dos dois sacos, percorria a fila pedindo boleia para a Amadora.
Assim sussurravam os angustiados, cada um a acudir alguém, e eu igual a eles, porque a minha filha bebé, como qualquer bebé filho de qualquer pessoa, precisa de comer. Mas no segundo supermercado já não havia sopas, nem no terceiro ou no quarto, muito menos no quinto – e só depois de uma jornada de mota pela cidade, além do mais continuamente incentivado pela resposta tardia e confusa do Governo, consegui comprar-lhe refeições.
Pois é, gente sentenciadora e perfeitamente cool que tudo sabe, para tudo está preparada e que não se deixa afectar pelos momentos extraordinários da vida: quem nunca açambarcou que atire o primeiro boião de sopa de bebé.
Vão em paz, e que a Luz esteja sempre convosco.
O autor escreve segundo a antiga ortografia