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Metade da minha ascendência é da zona de Miranda do Douro, os meus avós paternos eram de Sendim (onde a nossa família responde pelo sobrenome Dau, esse é o nosso nome local) e, apesar de nunca os ter ouvido a falar mirandês, sempre me pareceu especial ter origem numa terra que tem uma língua própria. A ideia de que, num país com uma única língua oficial e dominante, há um enclave, lá no canto superior direito, no planalto transmontano, que tem um idioma independente, levava-me sempre a imaginá-lo como a aldeia do Astérix, um nicho de resistentes, que se mantêm diferentes por uma questão de brio identitário.
Há que ser gente de muita força para trazer uma língua de tão longe e conseguir chegar com ela ainda materna ao final do século XX, mesmo contra a proibição dos padres que lhe chamavam o “dialeto do diabo” ou das escolas do Estado Novo que castigavam as crianças que falavam como em casa. Gente que durante nove séculos transmitiu o idioma, geração após geração, sem recurso à escrita, e que só em 1999 a viu reconhecida no Parlamento, com uma proteção legal que serviu de bálsamo para o estigma acumulado. A mesma gente que lavrou aquele chão difícil, nos invernos impiedosos e nos verões ferventes, com aquela fibra para o trabalho que só os transmontanos têm. Gente para quem falar português era falar “fidalgo”, uma língua institucional, que não lhes pertencia e que representava a alteridade de um Estado longínquo. Gente que passou da vergonha por falar uma língua antes proibida, ao profundo orgulho pelo milagre da sua preservação.
Hoje, já na terceira década do século XXI, ensina-se mirandês nas escolas do concelho (com uma adesão esmagadora por parte dos estudantes), já há traduções de clássicos da literatura para mirandês, dos “Lusíadas” ao “Principezinho”, há bandas de dimensão nacional que cantam em mirandês como os Galandum Galundaina, há uma consciência cultural e política de que é preciso valorizar o mirandês como um património comum, mas apesar disso tudo, a língua está em perigo.
Nas últimas sete décadas, o planalto mirandês perdeu metade da sua gente. O advento dos meios de comunicação em massa disseminou o uso da língua portuguesa nos quotidianos e a transmissão intrafamiliar do mirandês foi enfraquecendo. Nunca, como hoje, o mirandês esteve em risco de extinguir-se e é irónico que nem a proibição ativa tenha sido tão eficaz na sua erosão. É irónico que no momento em que há mais registos escritos e documentação sobre a língua haja cada vez menos falantes. Como é irónico que as autoridades, municipais e nacionais, demonstrem as suas teóricas boas intenções, ano após ano, mas que tão pouco seja feito de concreto para salvar o mirandês.