Corpo do artigo
Já dizia Regina Guimarães:
“Futebol de canapé / nossa senhora da bola / tenho medo e tenho fé / cerveja com muita gola. / Ó Senhora dos parolos que fazes lá na azinheira, / precisamos é de golos e missa futeboleira”.
Num sábado de maio, em Lisboa, uma capital europeia, fecham ruas e avenidas ao trânsito e fecham-se as estações de metro no centro da cidade. Ninguém passa entre o Saldanha e os Restauradores, nem de carro, nem de autocarro, nem de táxi, nem de uber, nem de metro. Só a pé e já é uma sorte (entre as barreiras policiais).
Num sábado de maio, em Lisboa, uma capital europeia, fecham lojas, cafés e restaurantes, quiosques e farmácias. Todos os estabelecimentos comerciais são impedidos de trabalhar, de fazer negócio, num dos dias de maior afluência e não há onde ir comprar uma garrafa de água sequer. Entre o Saldanha e os Restauradores, está tudo fechado e não é sequer como se fosse domingo, é como se fosse o apagão, o apagão da bola.
Entro na estação de Entre Campos rumo ao Chiado, desavisada. Não há aviso aos utentes de que até a circulação subterrânea está interrompida. Pago bilhete, entro numa carruagem cheia, que ao chegar a Picoas abre as portas, mais uma vez sem aviso, e são os passageiros que (pelo tempo que passa) se apercebem que o metropolitano não vai andar mais. Na estação não há ninguém a prestar esclarecimentos. Saímos todos para a rua sem saber que, a partir dali, estamos por nossa conta, mesmo tendo pago bilhete. Simplesmente não há transportes. Não há ligações a outras linhas, a autocarros, barcos ou comboios e, para apanhá-los, há que ir a pé, mesmo que seja longe.
Dizem que são medidas de segurança por causa do derby. Lisboa, uma capital europeia, tem uma autarquia que impede que a circulação dos cidadãos se faça normalmente, assim como obriga ao fecho de todos os estabelecimentos comerciais num raio de quilómetros, por causa de um jogo de futebol. Toda a gente parece achar normal que a possibilidade de haver um vencedor do campeonato e, portanto, eventuais festejos, acarrete violência nas ruas, ao ponto de ser necessário parar a economia da cidade, os transportes públicos e o direito à livre circulação de pessoas.
O mais espantoso é que não é só no final do jogo, confirmando-se que haverá celebrações de vitória, é muitas horas antes do início da partida. Claro que ninguém indemnizará os negócios que ficaram fechados desde a hora de almoço de sábado, mesmo havendo empate no fim. Ninguém compensará os que ficaram impedidos de trabalhar, de circular e sem acesso a transportes públicos durante toda a tarde de sábado. Mas também ninguém parece importar-se com isso, porque a cegueira pelo futebol é grande, a violência que lhe está associada é normalizada e viva “nossa senhora da bola”!