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Há uns mitos que funcionam como armadilhas na parentalidade (em particular) e no patriarcado (em geral) e que há muito adoecem gerações e gerações de mulheres. O de que somos dotadas da capacidade de multitasking é um dos mais nocivos, glorificando a nossa sobrecarga e a necessidade permanente de praticar malabarismos impossíveis entre as tarefas domésticas, as responsabilidades laborais, o cuidado com as crianças e com os mais velhos, e o fardo mental de agilizar e conciliar todos os horários, necessidades e afazeres.
O do instinto materno é sem dúvida o mais romantizado, como se nascêssemos já predispostas e sabedoras para assumir o cuidado como missão feminina, ignorando que desde que somos crianças e nos põem bonecas nas mãos, estamos a ser treinadas e condicionadas para que pareça instintivo o que na verdade é culturalmente formatado. Já para não falar da largura de costas do conceito de amor incondicional, que põe uma camada de açúcar bem espessa em cima da assunção compulsória do cuidado, como um trabalho que supostamente fazemos por abnegação carinhosa e não por necessidade. Desde logo, porque nos falham os companheiros com quem deveríamos dividi-lo e, depois, porque nos falha o Estado, que deveria dar condições para que não ficasse quase exclusivamente nos ombros das mulheres a responsabilidade de cuidar dos bebés, das crianças, dos idosos e dos doentes, sem remuneração ou suporte de creches, lares, assistência, subsidiação, redução de carga labora, licenças, etc.
Mas há um mito menos falado que nos atinge vezes demais (ainda que indiretamente) e que normalmente serve de atenuante a quem se dedica pouco à parentalidade e, com isso, sobrecarrega a função materna: a ideia de que o "tempo de qualidade" é suficiente. Falo desse cliché que ouvimos amiúde de que o que importa é que quando se está com as crianças haja uma disponibilidade para dar uma atenção reforçada ou para fazer uma atividade especial, quase como um evento, nesse eclipse que às vezes ocorre numa semana demasiado cheia de outras coisas.
Ora, por muito que a sobrecarga laboral seja real e paire sobre quase todos, esse mito é demasiadas vezes desculpa de mau pagador, porque se há coisa que os cuidadores sabem é que o tempo de quantidade é o mais importante. O dia a dia, a trincheira, as madrugadas, as viroses, as rotinas, as fraldas, os dias úteis, os finais de tarde caóticos, as birras e as consultas, as reuniões de pais que são mais vezes de "mães" e todas as minudências que fazem do cuidado um processo interminável e extenuante. É o tempo de quantidade que as faz chamar por nós quando estão doentes, que constrói a confiança total, a intimidade absoluta e o vínculo (o mais importante alicerce da primeira infância), esse sim sinónimo de "amor incondicional".