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Escrevo depois de assistir à etapa dominical do “Giro”. A qualidade das transmissões televisivas das três grandes voltas faz com que, além de nos deliciarem com as paisagens, incluindo o património existente ao longo dos percursos, permitam fazer uma boa leitura da prova, e as peculiaridades táticas do ciclismo são sempre cativantes, mesmo dando de barato que as voltas italiana e espanhola nunca estarão ao mesmo nível do “Tour de France”. E ler as táticas desportivas é uma forma de ler as táticas da vida: pessoas em competição com outras pessoas têm os mesmos laivos de dignidade ou da falta dela, de inteligência ou da falta dela, de humildade ou da falta dela, estejamos nós a observar uma corrida de bicicletas ou a luta pelo poder político.
À entrada para a terceira e última semana da prova, a camisola rosa, símbolo do líder da Volta a Itália, é envergada pelo mexicano Isaac Del Toro. Embora integre uma das mais poderosas equipas do pelotão internacional, este jovem não fazia, nem parece fazer ainda, parte dos planos de vitória dessa que é a sua entidade patronal. Sendo o ciclismo uma modalidade em que o coletivo é determinante, percebeu-se bem que, pelo menos até ontem, o jovem Isaac está sem apoio dos seus colegas, embora livre de fazer pela vida (e que bem reagiu a todos os ataques). A aposta da equipa, em que a maior vedeta é o esloveno Tadej Pogacar e da qual faz parte o português João Almeida, ambos ausentes desta prova, continua a ser o espanhol Juan Ayuso, que é terceiro, a perto de minuto e meio do líder. Del Toro é, usando a expressão anglófona, o “underdog”, aquele que surge do nada para contrariar tudo. E a atitude da equipa, que ontem podia ter reforçado seriamente a liderança de Del Toro, tanto pode ser acertada como um tiro nos pés. Sabê-lo-emos no próximo fim de semana,
Uma equipa em que não remam todos para o mesmo lado é disfuncional. E na política: o que é uma equipa? Um partido ou mais do que isso? Podemos traçar linhas de fronteira entre os que defendem a democracia e os que a desconsideram ou mesmo desprezam, independentemente de se servirem dela. E perceber que a união pode existir sem ser unanimismo.
A ascensão de Adolf Hitler, nas décadas de 1920 e 1930, foi algo com causas muito complexas, mas entre elas estava o facto de as restantes forças políticas alemãs estarem muito ocupadas a lutar umas contra as outras, desvalorizando o extremismo nazi. “Mutatis mutandis”, estamos, também em Portugal, num tempo em que a diversidade das forças políticas, que terá de existir, não pode ser desligada do interesse comum a todos: a defesa do Regime Democrático. Não é bom que estejam agora todos a querer marcar território, atacando-se preventivamente uns aos outros, quando a defesa da democracia é um só lado. Bom será que todos percebam que, de facto, a vida das pessoas se tem degradado mesmo muito, e isso alimenta os demónios que toda a gente tem dentro de si.