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Não vou aqui divulgar onde resido. É algo que nem a mim nem aos leitores interessa minimamente. A mim pelo desejo de privacidade, aos leitores por quererem lá saber de um tipo que lhes aparece a escrever umas bagatelas, como diria Camilo. Um tipo presumido, ainda por cima, ao comparar-se com o incomparável Camilo Castelo Branco. Mas, enfim, moro numa zona do Porto que tanto pode dizer-se típica como histórica, onde os mais irrisórios sucessos se revelam metáforas do tempo sórdido que nos calhou em sorte.
A minha rua é encimada por semáforos, havendo períodos de tráfego intenso. Assim é pela manhã, no alvor de cada jornada laboral, e isso faz com que dois agentes policiais munidos de apitos - não são sempre os mesmos polícias -, fiquem postados no cruzamento (um entroncamento, na verdade), comandando os automobilistas e afins e querendo otimizar o fluxo rodoviário. No essencial, o que fazem é só acrescentar uma enervante banda sonora às indicações dadas pelas luzes: parar no vermelho, avançar no verde e fazer de conta que não se vê o amarelo.
No passeio, uma vintena de metros acima da minha porta, vi, por estes dias, uma ratazana de tamanho considerável, avançando muito lentamente, mas com movimentos bruscos, espasmódicos. Mexia-se como um boneco mecânico que está a perder a corda. Ainda tive de alertar um casal de turistas cuja criança se aproximava do bicho, dizendo que era um animal potencialmente agressivo, portador de doenças e claramente sob o efeito de veneno. Lá perceberam e tomaram o menino pela mão.
Ora, mais do que a costumeira metáfora do lobo com pele de cordeiro, o episódio da ratazana lembra-me a banalização dos perigos. Talvez por nem saberem o que é uma ratazana, ou por apenas conhecerem o simpático Rémy do filme "Ratatouille", esquecem o essencial. A insalubridade em que esses bichos prosperam, a agressividade que os caracteriza e as doenças que transmitem. Podem até ter a tentação de os considerar fofos e merecedores de uma oportunidade, ou de uma festa na nuca, ou de confiança política. Já os agentes ao cimo da rua, estrilhando com os seus apitos, sugerem-me as pessoas que, seja na rua ou nos espaços virtuais de alegada socialização (as redes sociais), disparatam por tudo e por nada, disfarçando de opinião ou convicção o ruído que produzem e afastando-se do essencial, que é o bem comum.
Camilo Castelo Branco, que até viveu algum tempo perto do cimo da minha rua, seria rapaz para correr as ratazanas à bengalada. Já eu, que não ouso comparar-me, mas aqui estou, sofro por ver nos meus esforços a inutilidade dos apitos policiais.