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Temos ouvido todos os dias que a crise da Esquerda é estrutural, que é uma tendência internacional e que não tem que ver com líderes ou circunstâncias locais. É verdade. Não será, de facto, uma crisezinha de trazer por casa e há muitos sinais de que a realidade portuguesa tende a acompanhar as dinâmicas europeias, onde os partidos de Esquerda têm tido dificuldades em afirmar-se como alternativa. Acontece que, ao contrário do que costuma ser dito, não considero que isso seja apenas culpa da Esquerda, por ser incapaz de chamar para si a representação dos desamparados do Estado social. A causa é multifatorial e muito mais profunda do que eventuais erros de estratégia eleitoral ou da falta de líderes carismáticos.
Desde logo, num tempo em que o espírito da época está impregnado da cultura neoliberal e em que a vontade individual está acima do bem comum na hierarquia axiológica, os princípios de Esquerda soam mais do que anacrónicos. Se é mainstream endeusar milionários e não heróis, beneméritos ou artistas (como no século XX), qualquer discurso que faça a apologia da igualdade, da redistribuição da riqueza e da justiça social (explicando que para haver grandes fortunas, tem de haver muitos explorados), dificilmente colhe popularidade. Além de que, para as novas gerações, ser contra o sistema já não é sinónimo de ser de Esquerda, não porque a Esquerda seja sinónimo de poder, mas porque deixou de ser sinónimo de rutura.
Neste ponto, porém, a culpa é própria. O discurso da Esquerda foi-se moderando, para fintar acusações de radicalismo, numa domesticação que contribuiu para o seu esvaziamento, enquanto o populismo aumentava o tom e a radicalização, mobilizando as massas a partir do descontentamento. De um lado, os neoliberais acusavam os socialistas de serem extremistas, levando-os a suavizar a voz e o discurso, do outro, a extrema-direita aproveitava o espaço, apontando furiosamente para o desespero dos mais frágeis (órfãos de narrativas poderosas que explicassem a perda de poder de compra, de estabilidade e perspetivas de futuro) e apresentando os culpados e as soluções fáceis.
Somando a desinformação constante, em campanhas nas redes sociais pagas a peso de ouro pelos interesses económicos que levam os populistas ao colo, como também o clima de hostilidade que se disseminou online e que facilita a normalização da extrema-direita no espaço público e nas instituições políticas, está criado o ambiente perfeito para a trepadeira do ódio tomar conta de tudo. O indivíduo paira acima do coletivo, o “eles” está sempre contra o “nós”, os factos perderam o lugar para a “verdade de cada um”, os média são “veículos de propaganda” e os veículos de desinformação são “fontes independentes” e temos a tempestade perfeita para que se estabeleça de vez a narrativa de que foi a Esquerda que criou o status quo (e não o neoliberalismo vigente) e que a extrema-direita é a rutura libertadora. Tudo com o alto patrocínio do capital, que ganha, num primeiro momento, com o desmantelamento do Estado social e, depois, com autocracias (em que todas as possibilidades de saque, exploração e desregulação do mercado podem ser concretizadas sem oposição).
À Esquerda resta resistir, voltando à base, ao bairro, ao sindicato, à escola, à associação de pais, aos movimentos sociais, porque é na rua que se constrói comunidade. E mesmo parecendo anacrónico, é na comunidade que recuperamos o amparo, as redes de solidariedade e a escala que torna possível o impacto da nossa ação. Há que criar novas utopias, refundar os discursos e renovar os votos com o radicalismo, porque em tempos como os que vivemos, em plena crise climática, perante o genocídio em Gaza, com tantas desigualdades sociais e sob tão violentos discursos de ódio, ser moderado é andar a fazer festinhas ao monstro, até perder as últimas almas mobilizadas e com vontade de mudar o Mundo que ainda restam.